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A ferida da representação. Uma breve recensão ao mais recente livro de Delfim Sardo.

[Texto publicado na revista online “Intro” dedicada à reflexão sobre Literatura, Teatro e Música, 2017]

 

O exercício experimental da liberdade intitula o último livro do ensaísta, professor e curador Delfim Sardo terminando um processo que foi encetado em 2007 num conjunto de nove conferências proferidas pelo autor na Culturgest, a convite de Miguel Lobo Antunes. Esta empreitada teórica reconfigurou a tese de doutoramento de Sardo apresentada na Universidade de Coimbra em 2012 de onde se decantou a presente publicação da Orfeu Negro.
Esta investigação centrou-se numa questão transversal às prácticas artísticas do século XX e que se pode sintetizar na interrogação quanto à viabilidade da arte, em sentido amplo, face às contingências das práticas disciplinares. A estrutura do livro mantém a sequência da anterior dissertação, apresentando também por isso uma feição académica: uma introdução sobre o problema da arte em sentido amplo e a relação conflituosa com a especificidade das obras de arte em si mesmas, ou com a especificidade das disciplinas artísticas; os capítulos seguintes avançam para uma problematização da possibilidade das imagens na actualidade, numa alusão clara à redefinição do meio pictórico no presente, segue-se para o campo da escultura ou, melhor dizendo, para os domínios da espacialidade (em campo expandido), depois para as problemáticas do uso das imagens mediadas por dispositivos lenticulares, neste caso, a fotografia, na sua relação com a ideia de serialidade, e “a imagem em movimento, projectada como constituinte de uma cinemática da tridimensionalidade que não é necessariamente cinematográfica”; finalmente os últimos capítulos dedicam-se à performatividade e ao corpo. Um corpo que o autor procura pensar, a partir das considerações filosóficas de Deleuze, que considera corpo muito para além da sua dimensão estritamente física, abrindo a possibilidade para um entendimento mais alargado, “pode corresponder a um indivíduo, a um sujeito, mas também pode ser um colectivo, um grupo ou um conjunto de entidades imateriais – como um corpo de ideias -, ou um bloco social, dito um corpo social.” Assim para Deleuze, como para Sardo, um corpo é e deve ser pensado como a velocidade e intensidade das trocas que este realiza com o seu exterior. Por conseguinte, em arte um corpo apresentado será sempre um corpo representado, por nele se investir em cada momento um conjunto de possibilidades de representações do que um corpo é, ou como funciona, mesmo quando a apresentação do corpo ocorre em tempo real na presença do espectador.
Assim, as questões da necessidade da representação como natureza primordial do acto criativo parecem ser o lugar de chegada ou destino de todo o edifício teórico que, neste livro-tese, Delfim Sardo nos propõe, afinal “O que é representar?”. Parece não existir outra forma de responder a esta interrogação, sobre uma das necessidades mais viscerais da condição humana, senão pela (im)possibilidade do alcance poético, como nesta belíssima frase de Joseph Beuys que encontramos no interior do livro:

“Mais uma vez, gostava de começar com a ferida”.

A esta frase gostaria de juntar uma outra emprestada por Regina Guimarães e que parece intensificar a anterior de Beuys:

“A criança desenha um dia feliz,
um dia cor de ferida.
Mas por muito que rabisque
Nunca conseguirá cicatrizá-la.”

 

 

 

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