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A Re-existência do Projeto Anual com Escolas ou algumas pedras pequeninas que se atiram à água.

[Texto integrado na publicação do Serviço Educativo do Museu de Arte Contemporânea de Serralves intitulada “Construções em Trânsito / 15”]

 

“Compreendo que não é fácil fazer o que está certo,

mas é bom saber como fazer melhor e trabalhar para isso.”[1]

Richard de Neufville

 

 

{Primeira nota ao leitor}

Antes de ler, vincar ad libitum a presente página.

 

Desde há quase década e meia que o Serviço Educativo do Museu de Arte Contemporânea de Serralves tem no seu programa uma linha de atividade que desenvolve uma relação de trabalho privilegiada com as escolas, nos seus vários estádios etários, vislumbrando promover sinergias criativas que transformam o museu num espaço simultaneamente educativo e de fruição. Neste contexto estimula-se o prazer da descoberta, do pensar sem limites e receios, exploram-se perceções e afetos na nossa relação com as inesperadas visões de mundo dos artistas contemporâneos. Assim se poderá definir o pano de fundo do Projeto Anual com Escolas (PAE).

Colaborando, enquanto artista-educador, com o serviço educativo desde 2007 e estando neste momento com responsabilidades acrescidas no apoio ao desenvolvimento deste projeto em particular, aproveito a ocasião deste texto para explicitar algumas ideias que não serão mais do que uma escuta interior da minha relação com este.

A longevidade e envergadura do PAE, traz um peso diferente a qualquer pessoa que se aventure numa reflexão sobre as suas entranhas, porém, não tendo a pretensão de sistematizar nenhum pensamento profundo sobre esta linha de trabalho do Serviço Educativo, gostaria de deixar laconicamente algumas ideias que tentam aclarar desafios futuros.

Comecemos por colocar aquelas que me parecem ser as perguntas mais justas: em tempos de liquidez e efemeridade, onde a ânsia de novidade exige a cada passo mudança, como tem resistido o PAE face à sua longa trajetória? Qual a sua vitalidade? Estas interrogações são tão pertinentes quanto: e como pode continuar a re-existir? Como renovar uma existência introduzindo mais valias? Ser o que se é mas diferente?

 

  1. O sulco no papel.

 

“Passa-se com o cérebro qualquer coisa de parecido com o que se passa com uma folha de papel quando a dobramos ao meio: no lugar da dobra fica um sulco como resultado da transformação operada — sulco que favorece a reiteração posterior dessa mesma transformação: bastará soprar o papel para que ele volte a dobrar-se pelo mesmo sulco.”[2]

 

A imaginação e a Arte na Infância é uma das primeiras obras escritas pelo psicólogo russo Lev Vygotsky (1896-1934) tendo sido editada pela primeira vez em 1930. Os oitenta e cinco anos que nos separam das reflexões deste autor sobre a natureza e o desenvolvimento da imaginação artística nas crianças, não inviabilizam a sua atualidade. Não sendo este o lugar para uma resenha demorada sobre este livro, gostaria de encetar estas notas reflexivas sobre o PAE com a imagem do “sulco” avançada por este autor na citação em epígrafe. Às páginas tantas, Vygotsky denomina atividade criadora como toda a realização humana responsável pela criação de qualquer coisa de novo, quer corresponda aos reflexos deste ou daquele objeto do mundo exterior, quer a determinadas construções do cérebro ou sentimento que vivem e se manifestam somente no próprio ser humano. Isto significa que a nossa atividade criativa encontra-se de mãos dadas com a nossa memória, residindo a sua essência no facto do homem reproduzir ou repetir normas de conduta já criadas e elaboradas ou ressuscitar traços de impressões antigas. Em traços largos repetimos com maior ou menor precisão alguma coisa já existente. Passa-se, então, com o nosso cérebro o mesmo como quando uma roda deixa a sua marca na terra mole, deixando um trilho que fixa as transformações e que facilitará no futuro passar por ali novamente. Mas, se o nosso cérebro se limita a conservar apenas experiências pretéritas, o que é que acontece quando nos deparamos com situações e problemas inesperados cuja experiência vivida não tenha informação relevante ou cujos trilhos não se adequam? Como quando futuramos cenários? Ou nos detemos a pensar um tempo remoto no qual não existimos? Sobre estas perguntas, Vygotsky, diz-nos que todo o homem para além da sua atividade reprodutora possui a capacidade não só de inventar novas imagens e ações como de relacioná-las e/ou combiná-las. Isto significa que o cérebro não se limita a ser um órgão capaz de conservar ou reproduzir as nossas experiências passadas, sendo também por excelência um órgão combinatório, criador, capaz de reelaborar novas normas e conceções a partir de experiências passadas. É precisamente a atividade criadora que faz com que todos sejamos projetados para o futuro, seres que contribuem para transformar o presente.

De acordo com a minha sensibilidade, as oficinas do PAE, orientadas pelos artistas-educadores do Serviço Educativo de Serralves, assemelham-se quer na forma quer na intencionalidade ao “sulco” que Vygotsky nos fala. Os momentos de encontro e experimentação no Museu definem trilhos vários, com direções que por vezes se intersetam ou se sobrepõem, onde a imaginação e a fantasia possam percorrer. Estas veredas ajudam os participantes não só a interrogar o mundo que os rodeia, mas também a conhecerem-se a si próprios, promovendo experiências e vontades que ao mínimo sopro possam ressurgir.

Todavia, de cada vez que me confronto com esta imagem de Vygotsky, penso: estaremos nós – educadores, artistas, professores – concentrando a nossa energia na qualidade, diversidade e profundidade dos sulcos ou, ao invés, colocando a força apenas no sopro?

 

  1. O ambiente-meio ou re-parar no entre.

Analisando o PAE nas suas diferentes fases identificamos o seu escopo: uma exposição final no Museu de Serralves. Sobre este determinismo afloram-me à razão duas percepções aparentemente contraditórias:

  1. A visibilidade dos trabalhos, desenvolvidos pelos alunos e orientados pelos professores, no interior do Museu, introduz na participação uma componente fundamental de responsabilização e reconhecimento. Se por um lado, a participação, inicialmente através de oficinas criativas orientadas nos espaços do Museu e posteriormente na sala de aula, levar à produção de um resultado que será partilhado publicamente com uma comunidade mais alargada interfere, positivamente creio eu, no grau de empenhamento dos participantes na qualidade dos seus projetos; por outro lado, a respetiva receção pública, entre pares e não só, traz o reconhecimento. O desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano. Não se trata, com efeito, de satisfação ou de amor-próprio, mas antes, do reconhecimento do outro, pois será por esta via que qualquer participante se humaniza, que se constitui como pessoa.
  2. O coreógrafo João Fiadeiro diz-nos: “Os jogos que estamos habituados a jogar são aqueles em que, sendo as regras dadas de antemão, as posições também são postas mesmo antes de lá estarem: na prática, não são postas, mas pressupostas, acabando assim por serem também impostas.”[3] O PAE estabelece todos os anos as suas regras: atribui-se um tema, definem-se as escalas e proporções do objetos finais, estipula-se uma calendarização para os participantes. Porém, em “jogos” deste tipo, podemos incorrer no risco de reduzir o espaço para aquilo que não seja esperado e sabido. O imprevisível, se e quando aparece, não consegue ativar senão o mesmo jogo, e neste jogo não consegue ocupar lugar positivo: aparece como uma falta, um sem sentido. No seguimento deste raciocínio fica uma inquietação: Como dar sentido e lugar à imprevisibilidade dos processos? O que acontece para cá do objeto final? Qual a fertilidade do que sai fora da expectativa: os acidentes, as falhas, os impasses, os desvios disruptivos e paradoxalmente edificantes?

Como tornar visível e partilhável o meio com a mesma potência que o fim?

Esta parece ser uma oportunidade para re-parar.

 

  1. Inventar o lixo e o que é meu pode não ser de todos.

 Uma das perguntas mais difíceis de responder prende-se com a forma como ajuizamos – por vezes espontaneamente, sem demora ou mais atenção – a qualidade dos resultados dos projetos anuais. Refiro-me mais concretamente aos objetos produzidos pelos estudantes depois de todo o percurso acontecido.[4]

Traçando uma panorâmica geral sobre as exposições, desenvolvidas nos últimos anos, uma invariante assalta-me imediatamente aos olhos e que, à falta de melhor termo, poderia identificar por: a estética da reciclagem.

Refiro-me a um modo de fazer que assenta em estratégias de construção tridimensional recorrendo à técnica da colagem a partir de objetos, artefactos ou outros materiais recuperados do refugo da escola ou do espaço doméstico. Tenho gasto algum tempo a pensar sobre isto. Se por um lado, este método operativo assenta num estratagema de escapar à carência (cada vez mais evidente) de recursos, perfilhando-se didaticamente políticas ecológicas, por outro lado, esta solução encontra correlatos formais e conceptuais desde os ready-made de Marcel Duchamp, a alguns autores fundamentais do nosso tempo como Robert Rauschenberg ou Thomas Hirschhorn, passando pelos object trouvé e as assemblagens dos anos 60, para não falar da Arte Povera.

Estes mecanismos de ação plástica que verificamos nos trabalhos, porventura herdeiros de interpretações mais enviesadas da história da arte recente, pela sua recorrência e invariância, resvalam, no meu entender, para um progressivo empobrecimento do uso e experimentação das possibilidades expressivas dos materiais, assim como, para uma redução da diversidade de meios e técnicas de expressão plástica nas escolas. Identifico neste tópico uma urgente reflexão: como escapar à permanência destas estratégias? E aqui arrisco avançar com uma possibilidade: tornando evidente a recorrência (a estética da reciclagem) não com o intuito de a suprimir, mas no sentido de a tornar mais rica, mais depurada, mais consciente e consentânea com a cultura contemporânea (também ela muitas vezes precária nas suas realizações plásticas mas, nem por isso, cuidadas, afinadas, depuradas nas suas organizações internas). Isto é, mais do que denunciar, eliminar, rejeitar é querer compreender os fundamentos que levam a determinada recorrência para poder transforma-la associando uma pedagogia que permita uma evolução, um crescimento qualitativo, porque sem dúvida alguma “Existe lixo que se não fosse feito teria de ser inventado”[5], para usar as palavras experimentadas da Professora Elvira Leite.

Uma segunda reflexão que gostava de lançar neste ponto prende-se com a ideia de individualidade e/ou coletivo na realização dos projetos.

Os limites de espaço da exposição do PAE obrigam a que as escolas participantes entreguem apenas um único trabalho representativo do processo de investigação levado a cabo por cada turma. Este facto logístico, determina duas opções: ou a turma elege um trabalho de um estudante que os represente, ou fazem um único trabalho coletivo. Embora não sendo prática generalizada, na verdade, se vasculharmos os trabalhos expostos nas últimas exposições verificamos que, a figura do autor coletivo tem sido sucessivamente utilizada. Todavia, se é verdade que os trabalhos de grupo trazem componentes fundamentais para o crescimento da pessoa, nomeadamente a exercitação da comunicação e capacidade de diálogo, a educação da escuta e da cedência, a compreensão da diferença, por outro lado pressente-se, porventura de forma mais nítida na expressão plástica, que os trabalhos tendem a uma superficialidade, isto é, a uma progressiva diminuição da radicalidade do gesto, do pensamento, da execução mais rigorosa; ou a uma desresponsabilização na execução (o que é de todos não é meu).

As perguntas que surgem correspondem a uma hesitação pessoal: existe criatividade coletiva? Será que o impulso expressivo mais autêntico e primordial é da ordem apenas do sujeito singular? Serão sempre os trabalhos de grupo a expressão de uma ideia que brotando com toda a energia e potência se torna lânguida à medida que vai sendo manuseada e discutida por todos? Será a consensualidade imposta pela lógica interpessoal inimiga da criatividade?

 

  1. Escutar é sair de nós.

 

“Ninguém me chama

Escuto o calcanhar do pássaro

Sobre a flor

E não respondo”[6]

 

Por acreditar na potência dos fragmentos e das ideias “à flor da pele”, neste bloco de texto deixo transcrito ipsis verbis os apontamentos que alinhavei no meu caderno enquanto pensava neste assunto, sem articulação, nem prudência:

 

“Este talvez o maior desafio para qualquer ponte, passagem ou conexão que se queira erguer entre um museu e as escolas. Não apenas ouvir o outro mas sobretudo saber escutar. Não é sobre o que se escuta, mas como se escuta.

O que dizem os professores? E os alunos?

Quais os seus problemas?

O que procuram eles num Museu de arte contemporânea?

O que querem eles fazer? Que temas querem ver discutidos?

Escutar ≠ Ouvir por paralelismo ao Ver ≠ Olhar;

Atenção desenvolvida à necessidade do outro. O que o outro pensa? Escutar não só a palavra mas também a linguagem corporal, as ações?

Para escutar abres-te a ti mesmo. Aberto à possibilidade de abdicares das tuas intenções, do teu ímpeto. Os professores mudaram, os estudantes idem aspas, a educação mudou.

Diminuição das atividades para haver tempo para pensar (escutar o mundo para além de nós). Redução não é paragem absoluta.

Responsabilizar o outro: tu tens coisas para dizer/ tu és capaz. Assim humanizas. Valorizar mais os professores.

 

Como transformar o projeto num diálogo mais vivo e justo? Menos unilateral e padronizado?

 

Simultaneamente: Escutarmo-nos a nós mesmos. O que andamos a fazer? E porque fazemos aquilo que fazemos? Desacelerar. Fazer menos pensar mais. O que importa conservar?”

  

  1. Por último, mais algumas pedras pequeninas.

 

 

{Segunda nota ao leitor}

Este último ponto deve ser lido assim: ideias-em-trânsito tomadas de leituras por alguns autores, retiradas do seu contexto original, transformadas em pedras e atiradas à água. Desaparecendo nas profundezas, deixam na tona as ondas de reverberação…

 

1ª pedra: Saber perguntar.

Todo o PAE começa num tema que se desdobra em várias perguntas. Por isso, é crucial começar com boas perguntas. Sabemos de antemão que a criatividade da pergunta é avaliada pela qualidade das respostas. A pergunta mais forte, mais imaginativa; a pergunta com mais poder será assim a pergunta que origina maior número de respostas distintas.

O mais interessante é a circularidade: um bom tema, multiplica-se em boas perguntas que geram novas respostas que, por sua vez, dão origem a outras perguntas.

O escritor Gonçalo M. Tavares escreveu sobre isto quando se referiu ao método da coreógrafa Pina Bausch: “Pina pedia seis movimentos para cada pergunta. Por exemplo: O que fazes quando te sentes atrapalhado? Era preciso responder com seis gestos diferentes.”[7]

 

2ª pedra: Sentar antes de começar.

Almada Negreiros conta uma história curiosa sobre Picasso: “Um dia perguntaram a Picasso qual era a primeira coisa que era necessário para ser pintor. O Picasso respondeu: Sentar-se. Ah! O mestre pinta sentado? — disse o outro, julgando estar senhor de uma confidência íntima do artista. Não. Eu pinto sempre de pé. — disse Picasso. E é isto mesmo: Antes que as cores deixem de ser tintas é necessário que se tenha formado primeiro o pintor; é necessário muito tempo antes do início; é necessário sentar-se.”[8]

Sentar-se é, aqui, símbolo do aprender, do preparar, do esperar. É a longa reflexão, a aprendizagem de tudo, a curiosidade máxima e prévia a qualquer ação futura que se queira eficaz e distinta.

 

 

3ª pedra: Ser camelo, leão e criança.

Nietzsche, na figura de Zaratustra, escreveu sobre aquelas que considera as metamorfoses do espírito humano, comparando estas aos próprios estádios da sua obra e da sua vida. São três: como o espírito se torna camelo, como o camelo se torna leão e como, finalmente, o leão se torna criança. De acordo com o filósofo, o camelo é o animal que transporta: carrega o peso dos valores e das regras estabelecidas, os fardos da educação, da moral e da cultura. Transporta para o deserto e aí, transforma-se em leão. O leão encarrega-se de calcar os fardos, dirige a sua fúria ao carregamento, critica tudo e todos; provoca a desordem; deseja a transgressão. Por fim, pertence ao leão tornar-se criança, quer dizer, começar de novo, criar novas ordens, novos valores, novas ideias; abrir-se sem preconceitos; falar, doravante, pelas suas próprias palavras.

O que aconteceria se a criança estivesse, desde logo, presente no camelo?

 

 

 

—*—

 

Porto, X / 2015

Samuel J. M. Silva

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[1] Excerto de uma entrevista concedida pelo professor e investigador do MIT – Richard Neufville— à jornalista Mariana Oliveira, retirado da edição do Jornal Público do dia 7 outubro de 2015.

[2]VYGOTSKY, Lev —A imaginação e a arte na infância. Lisboa: Relógio D´água, 2009. p.10.

[3] FIADEIRO, João; EUGÉNIO, Fernanda — O Jogos das Perguntas. Lisboa: Ghost, 2013.

[4] Quando visito as exposições, apetece-me sempre perguntar aos participantes: Como fizeste este objeto? Quanto tempo gastaste na sua realização? Gostavas de ter feito de outra maneira? Com outros materiais? Sobre outro tema? Como devemos olhar para estes trabalhos?

[5] Expressão repetida inúmeras vezes, em contextos informais de conversa ou reuniões de trabalho, pela professora/artista/ investigadora – Elvira Leite- nas suas inúmeras considerações sobre arte e educação.

[6] FARIA, Daniel — Poesia. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 3ªed, 2009.

[7] TAVARES, Gonçalo M. — Atlas do corpo e da imaginação. Caminho, 2013. P.277.

[8] PAULA, Ana — José Almada Negreiros: O corpo em palestra. Apenas, 2004. P. 100

 

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