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Antes de desfazer o monte, algumas considerações sobre livros de artista.

[Texto integrado na publicação final do Projecto de Edição  “Ao Monte” que, entre 2015 e 2017, procurou registar o trabalho desenvolvido desde o final dos anos 90 até à data, por alguns grupos e colectivos independentes de artistas na cidade do Porto]

 

Dilatação e desassombro.
O livro e a revista de artista sempre foram uma forma de provocação e alargamento dos espaços tradicionais de apresentação da arte. Um modo de pôr em debate os regimes de acessibilidade e divulgação das intencionalidades e experimentação artística. Lugares quase sempre baratos, imediatos, cuja autonomia absoluta de produção permitia aos artistas um espaço de liberdade e independência para as suas invenções formais e conceptuais.

Comum, coisa e re-existência.
Quando o tempo procurou estilhaçar os suportes tradicionais e o propósito era aproximar arte e vida, a banalidade do livro tornava-o irresistível. Ou sempre que as opções estéticas apostaram na radicalização conceptual da arte, as páginas do livro foram uma espécie de âncora e lugar de materialização. Assim como quando a instabilidade e irregularidade pautaram as programações dos espaços e colectivos independentes, foi a capacidade de disseminação do livro de artista que garantiu a sua re-existência para além do imaginário colectivo.

Os benefícios do toque.
O livro de artista coloca a acentuação na atitude mais do que nas competências técnicas, genialidade do artista ou glorificação do objecto. Retira o gesto artístico da sua redoma, dando-lhe uma existência comum, inserindo-a na mundanidade do toque. Os livros contêm na sua natureza o desejo do toque. Eles existem para serem manuseados. Os livros pressupõem a presença de um leitor e por consequência a activação protocolar do seu manuseio. E por intermédio do modo de usar vem a temporalidade. Enquanto obra, cada livro obriga a uma disponibilidade, a uma espera e ao esforço desejante pela revelação dos seus enigmas. Um livro de artista implica sempre um jogo labiríntico, um trajecto hesitante, como A. Hatherly sabiamente traduziu na dicotomia percurso-impasse. O livro é por excelência uma tecnologia do fascínio.

Sobre o excesso de luz.
Nos últimos anos assistimos a uma efervescência singular, na história do livro de artista, no que toca ao interesse cada vez mais entusiasmado por parte dos artistas na produção de livros e edições de autor, assim como a uma mobilização em massa por parte das instituições – Escolas, Centros de Investigação, Museus, Bibliotecas, Livrarias – na pesquisa, sistematização, catalogação, investigação, exibição e comercialização do livro de artista. Se por um lado esta centralidade trouxe um reconhecimento do potencial deste campo de produção e criação estética, por outro tem vindo gradualmente a ofuscá-lo por um excesso de luz. Não sei se a penumbra não lhe conferiria um silêncio mais fértil.

Desfazendo o monte:
O que se analisa nesta circunspecção em torno dos sete livros produzidos, mais do que qualidades estéticas ou afinidades histórias, são os pressupostos e estratagemas que sustentando as ideias permitiram ultrapassar problemas, criar outros e determinar feições. Tentar ver por dentro, portanto.

 Rua do Sol 172
Apresentam-se com uma baixela de pratos não com um livro tradicional. O desejo de ruptura com formatos convencionais de construção e relação com o livro de artista foi premissa basilar desde o início do projecto. Dada a história recente do colectivo, a aproximação ao universo gastronómico ofereceu-se como possibilidade natural, pois vários foram os eventos que celebraram a comida e raros os momentos de exibição artística sem patuscada. Encontrado o suporte unificador, a mobilização dos diferentes elementos do grupo obedeceu a uma metodologia precisa: uma espécie de cadavre exquis onde a troca sequencial de imagens entre os elementos do grupo seria a ignição para a produção das intervenções nas superfícies dos pratos. Por conseguinte cada artista, gozando da sua perfeita liberdade e das suas idiossincrasias intervencionou 2 pratos de sopa, 2 ladeiros e 2 de sobremesa. Foram produzidos 42 pratos, constituindo assim o aparato final do serviço de mesa proposto pelo colectivo Rua do Sol 172.

A sala
O livro d´A sala emerge de uma relação particular com a dimensão processual das performances levadas a cabo por todos os artistas convidados. O chão da sala de exposição nos Maus Hábitos foi replicado com cartões prensados criando uma segunda pele que serviu de palco para as explorações performativas. Uma espécie de livro aberto por módulos, projectado geometricamente para acolher as manifestações do corpo performante na sua superfície, fixando todos os gestos, movimentos, sulcos e manchas. Posteriormente estes módulos transfiguraram-se em páginas de um livro cujas marcas residuais se apresentam como cartografias abstractas inaugurando um novo regime de visibilidade, um outro modo de olhar. No verso de cada página encontramos serigrafadas breves reflexões que cada artista convidado fez do seu próprio projecto apresentado.
Um livro-palco cujas páginas testemunham de forma fiduciária as acções poéticas levadas a terreiro pelos artistas.

Artemosferas
Um mini-refrigerador, duas lâmpadas led vermelhas, sacos herméticos com documentação da programação do espaço Artemosferas, uma garrafa Cutty-Sark e três copos. Esta é a lista de materiais de uma possível ficha técnica do livro-instalação que o Alexandre A. R. Costa, Jorge Fernando dos Santos e Miguel Seabra nos apresentam. Partindo da metáfora dicotómica quente-frio propõem uma abordagem “termodinâmica” da memória, na consciência de que qualquer exercício de vasculho no passado implica sempre um esforço de reescrita individual. Assim sendo, a apresentação em cadernos de toda a programação documentada e sistematizada do espaço Artemosferas é inserida num dispositivo cénico metafórico (disruptivo?) obrigando um qualquer olhar desarmado a toda uma outra atitude e lógica de significação.

Fundação
“O que é o fundamental?” foi a pergunta-ignição lançada pela Fundação a um vasto grupo de artistas. O resultado foi a compilação em formato livro de um conjunto de textos, frases e palavras que representam o mergulho mais profundo que estes artistas fizeram na demanda do essencial e urgente. Um livro de palavras e com palavras que mais do que se darem a ler, procuram instaurar no leitor uma relação poética com a visualidade mas também abrir campos de pensamento e imaginação em torno das inquietações plasmadas pelos autores selecionados. Durante o seu manuseio somos confrontados, em cada virar de página, com universos distintos em suportes muitas vezes díspares tendo como lençol freático unificador a questão primordial que se liga radicalmente à própria etimologia do nome do espaço.

O Senhorio
Sendo desde a sua génese um lugar de encontro, este colectivo ambicionou neste projecto espelhar essa comunhão de pessoas e ideias através de um livro (fanzine?) ligado por uma sucessão de narrativas biográficas dos seus elementos em torno de um mesmo centro especulativo: a noite ou a relação poética com a escuridão. O lugar onde todos os gatos são pardos. No curso do livro percorremos um caminho que vai sendo interrompido por estórias – contadas ou desenhadas; mais ou menos íntimas – sobre sonhos, recordações de infância e outras imaginações que escapam ao alcance da razão. São conversas convertidas em imagens e textos desejando pertencer ao mesmo sítio, à mesma história ou à mesma pessoa.

Embankment
Respeitando os seus princípios de trabalho, o colectivo Embankment centrou os seus esforços na concretização de uma nova publicação em torno do seu programa conceptual primordial: pensar os processos de construção da memória, a partir da metáfora do aterro – esse lugar de acumulação de inertes onde, de forma entrópica, se desenvolvem os processos de sedimentação.
Nesta proposta somos confrontados com imagens produzidas em contexto laboratorial, onde os objectos estrategicamente enquadrados são transformados posteriormente, com recurso a ferramentas de pós-produção, em superfícies que nos desvinculam dos referentes iniciais. Mais do que um livro tradicional estamos perante um invólucro que guarda três imagens dobradas (frente e verso) passíveis de se transformarem facilmente em exposição de parede.

Inter + disciplinar + idades
Colectivo flutuante que no final dos anos 90 gravitou em torno da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e foi responsável por um programa cultural holístico e ambicioso construído em diferentes planos, de conferências à feira de livros, de exposições itinerantes a ciclos de cinema, apenas para referir algumas tipologias. Para o projecto “Ao Monte” decidiram compilar os documentos, materiais gráficos, fotografias, esboços de cartas, talões, fragmentos de jornais e todos os artefactos passíveis de testemunharem a actividade intensa do colectivo para dar forma ao que faz com que nem todas as coisas acontecidas se acumulem indefinidamente numa multiplicidade amorfa: um arquivo. Neste caso um arquivo possível face à dispersão de acontecimentos e mobilidade de pessoas que colaboraram nesta agitação cultural.
Na sua essência formal temos um saco que organiza um sistema de capas de arquivo onde se acumulam materiais que testemunham de forma viva e justa não apenas toda a actividade mantida como também a energia e vitalidade vivenciada nesse período.

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