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Diz-nos que as coisas podem ser (foram ou serão) de outra maneira.

[Texto publicado na folha de sala da exposição “Squelch” de Miguel Palma na Galeria Presença, Porto, 2017]

 

Diz-nos que as coisas podem ser (foram ou serão) de outra maneira.

 

Todo o trabalho artístico de Miguel Palma é um paciente e incessante acto crítico. Seja realista, lúdico, utópico ou satírico é sempre uma contra-afirmação do mundo que o artista constrói. As suas opções estéticas organizam interacções selectivas, condensadas, entre as imposições do mundo percepcionado tal como é e as possibilidades ilimitadas da imaginação. Esta intensidade que conjuga os sentidos e a composição especulativa é sempre crítica. Ela diz-nos que as coisas podem ser (foram ou serão) de outra maneira.

 

 

Se não formos capazes de surdez, nunca mergulharemos no silencioso oceano da escuta.

 

 

“Ninguém me chama

 

Escuto o calcanhar do pássaro

Sobre a flor

E não respondo”[1]

 

 

Em Yaesu, o artista decide transformar um espaço da exposição num laboratório de escuta a fazer recordar um qualquer quarto de um rádio-amador. Em cima de um fragmento de fuselagem de avião libertado numa descolagem, encontramos um velho rádio Yaesu (apesar dos seus 15 anos continua a ser o Rolls Royce da comunicação rádio em ondas curtas) ligado em permanência por um cabo com 50 metros de comprimento que atravessa o espaço de exposição até conectar uma antena colocada no telhado do edifício. Este dispositivo permite a qualquer ouvido atento e perseverante acercar-se de comunicações sobre condições meteorológicas – pressão, temperatura, vento — entre um bunker construído estrategicamente na ilha de Santa Maria, no arquipélago dos Açores, e os aviões que efectuam viagens transatlânticas.

A rarefacção e fragilidade da informação emitida contrasta com a sua importância crucial para a segurança das navegações, no entanto potencia a desmobilização das tentativas de decifração por parte do ouvinte apressado. Não deixa de ser irónico num tempo das grandes aventuras tecnológicas – High-Tech, Wi-Fi, GPS – assistirmos ao anacronismo nas comunicações aeronáuticas.

 

Todavia, há uma ideia que me agrada sobremaneira em Yaesu: a nossa capacidade de escuta é, neste tempo vertiginoso, permanentemente interrompida por urgências que se impõem, sobretudo falsas urgências, ficções que nos ocupam e cancelam o abraçar do instante. Sempre que a nossa escuta desiste de ir até ao fim, ela desiste de si própria. A verdadeira escuta, a escuta generosa – como me falou Miguel Palma no nosso primeiro telefonema – só pode configurar-se como um recuo crítico perante a torrente das palavras e das mensagens que a todo segundo pretendem aprisionar-nos. Vivemos uma enxurrada de estímulos que atordoam o nosso modo de vida, obrigando a nossa existência extenuada compensar-se com o entretenimento. Entre-ter é ter-nos entre, é manter-nos numa suspensão que nos extasia e aliena. “A arte da escuta é, por isso, um exercício de resistência[2]. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa dos contactos, à espectacularização do quotidiano (seja ele político, económico, cultural ou afectivo). A escuta constitui, muitas vezes, uma cesura, um corte simbólico, uma recusa, uma deslocação.

Na sociedade da comunicação há um défice de escuta.

 

A densidade conceptual de Yaesu transborda ainda para o título da exposição — Squelch: um termo técnico que designa a função de controlo, num circuito de telecomunicações, que permite diminuir o ruído, sendo substancialmente útil para a inteligibilidade sonora em transmissões distantes. Squelch evita, assim, os ruídos ou intromissões indesejáveis, como estações periféricas ou sons estáticos, optimizando a capacidade de escuta.

 

 

 

Ainda-não.

 

 

Tudo ocupa o seu lugar — quer dizer, tem seu sentido numa ordem na qual se insere perfeitamente. Se uma coisa se afasta do seu lugar o tempo toma conta de si.

Hoje em dia, as coisas ligadas à temporalidade envelhecem muito mais rapidamente que antes. Tornam-se instantaneamente em passado e, deste modo, deixam de captar atenção. O presente reduz-se a ápices de actualidade. Já não dura. Perdemos a duração. Perdemos o enraizamento. Perdemos a solidez. Os eventos, as ligações, as relações sucedem-se em catadupa sem direcção alguma e sem fim.

Na semana em que a necrologia divulgou a morte de Zygmunt Bauman, não consegui deixar de olhar a instalação Excel como um tributo ao pensamento do sociólogo polaco: “a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos contraditórios (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo de os manter frouxos, líquidos, instáveis”.[3] Mas também os objectos. Tudo é antes de mais nada, eminentemente descartável. Considerados defeituosos ou não satisfatórios, os artefactos são mercadorias antes de tudo e por isso podem e devem ser trocados. Mesmo que ainda cumpram o que deles se espera, não se imagina que permaneçam em uso por muito tempo. O espírito respigador do artista coleccionou alguns sedimentos de obsolescência prematura: ligadores de aviões, altímetros, parafusos, lentes de vidro, sistemas de emergência para descida desacelerada dos pilotos, sistema de Morse para acoplar ao corpo, gaiola para pássaros, entre outras curiosidades aeronáuticas.

A todos estes objectos foi diagnosticada invalidez não pelo seu desgaste evidente mas pelo prazo, por estarem fora de tempo, como escreveu atempadamente Byung-Chul Han: “Quem não pode morrer no seu devido tempo perece a destempo[4]

Também a perecer lentamente encontramos Epicentro, uma secção de madeira exótica deixada ao esquecimento durante anos recuperada nesta exposição para construir uma objecto pleno de performatividade e potência metafórica. Um tronco exposto à intempérie profusamente fecundado por uma fauna e flora microscópica é fustigado por uma lâmpada de cerâmica incandescente colocada no seu centro geométrico, funcionando como uma espécie de bomba-de-calor que por irradiação térmica vai secando, dizimando, evaporando todo o fluxo de vida que a humidade alimentava. Paradoxalmente enquanto a lâmpada nos aquece, tornando a relação com o objecto mais cómoda, vai destruindo toda a vitalidade da matéria orgânica presente no tronco.

 

Repleto de movimento mas carregado de uma energia trágica afigura-se Volta ao Mundo. Um engenho mecânico que coloca dois bancos de avião a rodarem a uma velocidade de seis rotações por minuto sobre o mesmo eixo mas desfasados no tempo. Um trabalho hipnótico, lúdico até, mas assustadoramente sinistro, denunciando a ideia de um potencial desastre através da impossibilidade de dissociação ergonómica entre banco e passageiro.

 

 

 

 

Inventámos o lugar para onde dirigimos a nossa atenção.

 

Existe no processo de Miguel Palma uma labuta fina e constante sobre a atenção dirigida aos objectos, veículos, utensílios, fragmentos e outras matérias enformadas. Uma espécie de construção activa de um tempo onde a cada instante os objectos são reaprendidos. Facilita-lhe neste processo o seu traço de pequeno sonhador em permanente estado de vigília (criança acordada?) que nunca atraiçoa o que vê, retendo a realidade do mundo com a transparência de uma película fiel. O seu olhar tem a vivacidade que em cada momento se estreia. E a curiosidade. E a vontade de jogo. E a vontade de surpresa. Por isso, vários os trabalhos que nascem dessa árdua tarefa de transformação: deslocação (implica sempre uma mudança de posição); alteração ao ângulo habitual; exposição ao diverso; maturação do próprio olhar; reconhecimento de que alguma coisa nos falta; adaptação a realidades, tempos e imagens que ultrapassam os nossos quadros referenciais; diálogo tenso ou deslumbrado que nos deixa necessariamente com uma tarefa por fazer. Cada objecto de Miguel Palma – Coliseu, Exit ou Visores – será sempre um propulsor para a conquista de um olhar novo que resignifica, introduzindo na nossa existência a possibilidade da dúvida, do insólito ou do enigma.

 

 

 

Vontade de surpresa.

 

Aos 12 anos Miguel Palma fez uma escultura para oferecer ao Pai. A motivação subjacente a esse gesto de amor foi a vontade de surpresa. O seu Pai tinha como ofício de tempos livres a construção dedicada e paciente de dioramas de guerra (reconstituições em miniatura de cenas bélicas reais ou imaginárias). Pelos relatos apaixonados de Miguel Palma percebemos a potência de fascinação que estas tarefas exerciam no seu espírito e imaginação criadora.

Nesta exposição o artista apresenta uma reconstituição de memória dessa escultura intitulada Túnel: uma secção de montanha que cumpria o propósito cénico para os tanques de guerra do Pai.

Ainda nessa tarefa infinita de rememoração da infância aparece Coordenadas (2015) um avião-brinquedo réplica de um Super Constellation que transportou, em 1966, Miguel Palma com dois anos de idade até à Guiné para visitar o Pai em serviço militar na Guerra Colonial.

 

 

No fim, uma palavra que sobrou e que merece luz: gravidade.

 

 

Porto, 13 de Janeiro de 2017.

Samuel J. M. Silva

 

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[1] FARIA, Daniel — Poesia. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 3ªed, 2009.

[2] MENDONÇA, J. Tolentino — A Mística do instante. Prior Velho: Paulinas, 2014.p.156.

[3] BAUMAN, Zygmunt — Amor líquido. Lisboa: Relógio D´Água, 2006. P. 9.

[4] HAN, Byung-Chul — O Aroma do Tempo. Lisboa: Relógio D´Água, 2016. p.14.

 

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