biography
biografia

Nós e as nossas circunstâncias: um percurso sobre a formação de professores realizada no âmbito do Projecto Criar com Escolas — “As cores da minha terra”.

Elvira Leite e Samuel Silva


Desinstalar para crescer.
Embora a escola mantenha o seu lugar primordial no ensino das matérias do campo cognitivo, actualmente reforça-se a convicção de que a educação artística é fundamental no desenvolvimento alicerçado da inteligência sensível, do pensamento divergente e da construção das subjectividades da pessoa humana na preparação para a vida futura.
O mundo mudou e permanece em transformação, tornou-se difícil corresponder aos novos apelos da sociedade em que vivemos; também não é fácil aceitar que as crianças já não são o que eram. As crianças, hoje, têm muitos estímulos. É constante a alteração na configuração e finalidade dos brinquedos e artefactos interactivos: os telemóveis, as modas – falar, vestir, pentear, andar -, a música global e eclética, a profusão de imagens, os meios de comunicação digitais cada vez mais avançados tecnologicamente. Ao alcance de um mero monitor e teclado as crianças são transportadas para mundos insondáveis. Aprendem muitas coisas sentadas.São cada vez mais irresistíveis os apelos exteriores à escola. Não sendo uma catástrofe, teremos de reconhecer que tudo isto forma e conforma as crianças contemporâneas.
O professor e filósofo George Steiner, a este respeito, partilhou em recente entrevista o seguinte: “ Lembro-me que quando fui dar aulas a primeira vez e havia crianças que claramente não gostavam de ler, eu dizia-lhes: “Tu és ignorante!”. Hoje, elas responderiam: “Não, tu é que és ignorante, pois não consegues manejar um computador. (…) Hoje há crianças a lidar com conceitos lógicos e matemáticos que costumavam estar reservados a uma elite de topo. Temos, por isso, de estar prontos para repensar a nossa noção de literacia. O que é hoje ser-se culto ou alfabetizado?”
A educação confronta-se com a interferência permanente da cultura Pop. Por um lado temos as crianças hiperactivas, por outro as que se revoltam e dispersam pelo tédio e inactividade.
Os professores, na sua missão quotidiana, reinventam-se arduamente na procura do melhor de si para enfrentar tudo isto. Todavia a escola para fazer face a esta realidade terá de reconhecer a necessidade de enfrentar movimentos de natureza distinta: concêntricos, na perspectiva de se compreender, afinando a sua verdadeira natureza e missão; excêntricos, no sentido de reconhecer os seus limites para avançar na construção de pontes profícuas com outras instituições, entendendo a educação (e a cultura) como um território partilhado, comunitário e dialogante.
Neste contexto, Fernando Hernandez, diz-nos que a cultura é um conjunto de valores, crenças e significados que as crianças seguem (sem terem consciência disso) para dar sentido ao mundo em que vivem. Diz-nos também que “o professor é um criador de circunstâncias”, como por exemplo, circunstâncias de relação com as crianças, circunstâncias para abrir portas e partir para projectos educativos que incluam a experiência artística.
Perante as exigências encaminhamo-nos para alterar a nossa forma de educar, muitas vezes, sem abdicar de princípios éticos e modos de pensamento entranhados desde sempre. A aceitação das fontes de sedução, inspiração e aspiração das crianças é um bom princípio. Sobretudo integrar, complementar, mostrar outros caminhos, outras possibilidades de expressão e de comunicação, nomeadamente aproximando-as da cultura cultivada relevando valores de cidadania e transformando a educação num acto pleno de consciência política e social.
Por conseguinte, cabe-nos a nós, professores/educadores, alimentar esta atitude de mudança: adaptando, arriscando, procurando parcerias com os nossos pares, mas também com entidades exteriores à escola; movendo e experienciando outros rumos. Contrariando o estabelecido. Desinstalando para crescer.
Recordamos ainda uma recomendação da UNESCO, divulgada nos finais do século XX, perspectivando o séc. XXI: “As artes de um modo geral e a experiência da criação artística, faltam às nossas vidas e isso dá lugar à violência; é preciso que as instituições culturais abram as suas portas e promovam actividades especiais para as crianças e adolescentes das nossas escolas e que professores, pais e a sociedade civil sejam levados a compreender a relevância desta via educativa participando na sua ampla divulgação e construção.”
Quanto mais expandido for o olhar sobre as coisas, melhor e mais tolerante será a sociedade que construímos.
Nas artes visuais a criatividade revela-se numa produção observável. A criatividade tem sempre a marca do indivíduo sobre o que produz, na relação com os materiais que usa. Não há diferença alguma entre o processo criativo usado na elaboração de uma obra de arte, no desenvolvimento de uma teoria científica ou até mesmo na invenção de uma arma. Pensemos nisto. Cruzar imaginação com reflexão, experimentação com reconhecimento de si e dos outros e seleccionar conhecimento para cada idade é um propósito nosso.
Os passos a dar, o agora e o depois, o método e a sua singularidade, a pluralidade de acções e intenções, o grupo, a prática criativa e os objectos de comunicação concebidos como respostas, constituem uma novidade consistente e entusiasmante.
Nesta senda conduzimos a nossa acção para um desígnio actual e actuante.
Entretanto o Museu e a Escola começam a trabalhar em parcerias e nesta caminhada colaborativa perspectiva-se, a longo prazo, a possibilidade de um trabalho em rede. Com uma aproximação inteligente e sincera entre escolas e as estruturas patrimoniais existentes reinventa-se o nosso lugar e ampliamos o sentido de comunidade.
O projecto cultural e educativo do Portugal dos Pequenitos, neste contexto, ganha especial relevância.


A formação em síntese.
A formação para professores orientada no âmbito do Projecto “Criar com Escolas” teve como pretexto temático, na sua primeira edição 2017/2018, “As cores da minha terra”. Estruturada num formato modular visou fornecer a todos os educadores e professores participantes um espaço de liberdade para o aprofundamento da pessoa-professor, no plano da sua sensibilidade e capacidade expressiva; na ampliação dos seus processos e metodologias de trabalho; assim como, na valorização do conhecimento interdisciplinar, do trabalho colaborativo e dos trânsitos permanentes entre o pensar e o fazer.
O itinerário proposto contemplou três módulos: i) Ensaios sobre a inter-relação eu-espaço-cor-memória; ii) Pensacção (pensamento + acção) sobre eu-cor-arquitectura-arte-ambiente; iii) Ensaio sobre a práctica de “Trabalho de Projecto” no processo de tratamento do tema “As cores da minha terra”.
Tendo como pano de fundo o tema proposto procurou-se, com recurso a análise de textos (ou excertos) de diferentes autores, momentos expositivos ou dinâmicas de grupo, reflectir sobre o tema relevando a importância do acervo expositivo do Portugal dos Pequenitos, da observação da natureza (património natural), das construções (património material) e das manifestações culturais locais (património imaterial).
Para uma reconstituição dos acontecimentos consideramos a apresentação integral dos guiões, utilizados nos diferentes módulos, como a estratégia mais eficaz. Todavia importa ressalvar as habituais discrepâncias ligeiras entre o holograma de antecipação e o acontecido.

  1. Ensaios sobre a inter-relação eu-espaço-cor-memória

1º Acto

Organização do espaço: Espaço amplo circundado na sua periferia por uma faixa de cartão canelado. Tubos de cartolina de várias cores colocados na vertical no espaço central. Parede para afixação informação.

Materiais: fita-cola papel, lápis de cor, marcadores, papel colorido, papel de alumínio, pedras, ossos, areia, folhas secas, tecidos, fios, plasticina.

Apresentação dos orientadores.

Recepção com entrega de um texto-excerto de Fátima Vieira sobre “Utopia”.

Leitura individual no interior da sala.

Propõe-se que cada participante se movimente na sala de forma livre. Formação de pares através de cumplicidades de olhares.

Cada par escolhe um tubo de cartolina partilhando no respectivo interior impressões pessoais sobre o texto.

Troca de pares (uma única vez).

Entregar papel e caneta preta com a pergunta: Qual a minha utopia enquanto educador-professor?

Afixação na parede das respostas.

Leitura individual (em voz alta) das respostas, precedida de apresentação (nome e disciplina de leccionação).

Amarração do 1º acto pelos orientadores.


2º Acto

Introdução pelos orientadores do jogo-acontecimento “Itinerário visual de identidades”.

Da periferia para o centro, representar simbolicamente, com recurso aos materiais disponíveis, marcas de episódios relevantes em diferentes fases da vida — infância, adolescência, juventude e adulto/professor-educador.

 

{intervalo}

 

Convidam-se todos para uma observação global e leitura interpretativa das marcas/percursos— Como leio os sinais dos percursos alheios?

Cada participante interpreta (em voz alta) um fragmento do percurso do colega do seu lado direito.

Amarração ﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽cursos.

lado direitote) slivre consequentemente ção do 2º acto pelos orientadores.


3º Acto

Distribuição do texto de Oliver Sacks retirado do livro “A ilha sem cor”.
(O texto que se apresenta corresponde a um excerto retirado do livro “A ilha sem cor” de Oliver Sacks. Neste livro, o neurologista inglês, relata duas viagens exploratórias que realizou à Micronésia com o intuito de observar como é que os indivíduos e comunidades daquelas paragens reagiam a condições endémicas invulgares — uma cegueira hereditária total para as cores nas ilhas de Pingelap e Ponape.

O excerto seleccionado foca uma passagem do livro que corresponde ao momento imediatamente após a chegada de Sacks à ilha de Pingelap.)

Leitura colectiva em voz alta. Cada ponto final provoca mudança de leitor.

Apresentação do entre-sessão:

Produzir uma fotografia digital que corresponda a uma interpretação pessoal sobre o texto de Oliver Sacks. Enviar para o endereço electrónico da coordenação do Serviço Educativo do Portugal dos Pequenitos.

Breve conversa-avaliação da formação.

 

  1. Pensacção (pensamento + acção) sobre eu-cor-arquitectura-arte-ambiente

 1º Acto

Organização do espaço: cadeiras organizadas para projecção; paredes da sala forradas com uma tira de papel cenário (sobretudo os topos e uma parede lateral), mesas para materiais.

Apresentação da estrutura da sessão.

Apresentação por parte dos participantes das imagens produzidas no contexto do desafio lançado na sessão anterior (a partir do texto de Oliver Sacks).

Conversa sobre as imagens.

 

2º Acto

Organização do espaço: Mantém-se a disposição.

Materiais: Saquinhos herméticos transparentes, materiais orgânicos (pedrinhas, folhas, pequenos ramos, sementes, etc), tecidos (branco, preto, amarelo, vermelho, azul, verde, roxo e laranja), revistas, papel de cor, celofan de várias cores, fios de várias cores (lã), cola, x-acto, fita-cola de papel larga, papel cenário, papel A1, tesouras.

Apresentação de um Powerpoint por parte dos orientadores como forma de desencadear uma reflexão conjunta sobre o problema da cor na sua relação com a arte contemporânea, arquitectura e ambiente.

Artistas abordados: Carlos Cruz-Diez, Richard Long, Ângelo de Sousa, Lourdes Castro.

 

{intervalo}

 

Apresentação da experiência-jogo “As cores de uma cor”.

Proposta para a realização de um trabalho monocromático, usando fundamentalmente recorte e colagem, a partir dos materiais disponíveis sobre um suporte com formato e dimensões livres.

Os participantes, que se disponibilizarem, partilham algumas impressões pessoais sobre as suas realizações.

 

Amarração do segundo acto pelos orientadores.

 

 3º Acto

 

Organização do espaço: Mantém-se a disposição.

 Trabalho de grupo (quatro elementos).

Reflexão e breves sínteses (duas ou três frases) escritas comentando os conteúdos da sessão, experiências realizadas/relação com a temática da acção de formação.

 

Leitura das sínteses em voz alta. Se não houver tempo os grupos colocam na parede as suas sínteses que fazem a ponte para a última sessão.

Avaliação: escrever três palavras de avaliação da sessão.

 

Entre-sessão: Observação do espaço exterior próximo. Registos individuais, fotográficos, apontando especialmente para as cores locais.

 

 

  • Ensaio sobre a práctica de “Trabalho de Projecto” no processo de tratamento do tema “As cores da minha terra”. 

1º Acto

 

Organização do espaço: Cadeiras e várias mesas de trabalho. Mesas para apresentação dos materiais. Iluminação boa.

Recepção dos formandos com entrega de um texto para leitura imediata: Guião de um percurso de acção para a concretização do trabalho de projecto sob o título – “As cores da minha terra”.

 Nota: Não há intervalo pré estabelecido. Os grupos organizar-se-ão de forma a gerirem o tempo de trabalho e de pausas.

 

2ºActo

 

Formação de grupos (três elementos) para um ensaio/concretização do projecto.

Trabalho de grupo em sala com troca de ideias e saberes, possibilidade de consultar textos, livros, revistas.

Trabalho exterior para recolha de dados no local escolhido por cada grupo (escrita, fotografia, desenho, texturas, diário de bordo, etc.)

Momentos de entrevista com os orientadores.

Em sala, tratamento dos dados recolhidos.

 

(Os formadores estarão disponíveis para acompanhar, responder a questões colocadas, sugerir, promover a avaliação contínua em cada grupo.)

 

3º Acto

 

Concretização do produto final – Caixa trabalhada + diário de bordo

 

4º Acto

 

Apresentação dos trabalhos com avaliação qualitativa.

 

Avaliação da acção de formação pelos formandos.

 

Saibamos criar as circunstâncias.

Por fim, deixamos duas propostas para reflexão:

Herbert Read: “Não acredito em fórmulas. Não acredito num programa ideal que se perpetue. Empanturrar as crianças de experiências, desmotiva-as e é estranho que esperem que quem orienta lhes diga o que está bem feito ou mal feito; está certo ou errado. Não são estas as atitudes recomendáveis. O desenvolvimento mental depende de uma variada e consistente relação entre a criança e o espaço envolvente e esta relação é básica para levar a cabo uma experiência de criação artística”.
Álvaro Siza Vieira: “O ser humano aprende através dos sentidos e portanto, por muito que mude o cenário de vida, é preciso valorizar a capacidade de ver criticamente, aprender a olhar e ver em profundidade, aprender a ver em detalhe e na globalidade”.

Será que as actividades artísticas poderão oferecer esta possibilidade?

Saibamos criar as circunstâncias.

 

 

 

contact
contacto