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PESICKEATREA MENTAL

[Para o catálogo “Fake Memoirs” de Pedro Magalhães]

1.

PESICKEATREA MENTAL 

(primeiro voo rasante)

, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva de álcool.

Como absorve ele o murmúrio das granjas, o estrondo das fendas de estilhaços com o esplendor do fogo de artifício? Ao fundo, uma nesga da alvorada pode aparecer e ligar o breu e o mar; cerâmica partida a incendiar-se, ou um reflexo turvo de luz, como a auréola que a bola de cristal irradia fixamente.

Das paredes há palmos de atmosfera lúcida, quase luminosa, intensificam pouco a pouco os assémicos gestos, outras escritas e idades mentais 

ROSÁRIO 

TEM 

IDADE MENTAL                                                                            PESICKEATREA
                                   
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GESTÁPE                                                                                        
                                                                       GESTAPE
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O ar é escuro e o olho escrutina as superfícies entregues à névoa e ao desejo. Ameaça e aproxima-se. Devora linha a linha a nitidez dos contornos. Lavrado a fogo, o sulco do cigarro aceso que o tempo não interrompe, perfura a mancha castanha escura no branco velho do material, sugerindo uma nuvem negra. Reconhece-se ainda a tatuagem, mas há sobre as coisas o resíduo dum luar lento que se esconde.

Ao fundo, uma nesga da alvorada pode aparecer e apagar o fulgor do cigarro, o nevoeiro da noite. O triunfo do império da luz absoluta dissipa o que arde na alma e é terno aos olhos.

Imagens que acontecem. 

2.

MEMÓRIA MORTAL

Pausa. Um pouco exagerada para tirar os seus efeitos.

Há um conto de Herberto Helder – “Doenças de pele” – sobre um personagem que descobre, do dia para a noite, que o seu corpo está tomado por uma mancha branca cavalgante. A propagação desta nefasta doença atira-o para um pânico louco, cuja vergonha de si, força-o ao isolamento. Transformara-se, então, num réptil branco e repugnante, sentindo vómitos ao tocar-se. Enquanto isso, na vertigem do pânico crescia subitamente uma força dramática que o libertava da trama separadora do mundo e o fazia apaixonar-se cada vez mais pelos estranhos, pela forma como se moviam, pelos seus rostos e gestos. Quanto mais atemorizado pela crise, maior a sua ternura e atenção pelas insignificâncias alheias: os sorrisos, o cabelo agitado pelo vento, o bafo das flores e da terra molhada. Amava tudo e todos intensamente. 

O desfecho da narrativa examina a possibilidade de que esta mancha galopante, afinal, não seja uma doença física. Talvez o corpo esteja como dantes, fechado, intacto. “Talvez entre o amor e o mundo haja uma chaga pior — a memória mortal.” 

As Fake memoirs do Pedro Magalhães são talhadas em pedaços de noite, onde um corpo ferido, basculante na lucidez e encandeado pelo desejo é seduzido pela beleza das coisas desfeitas, decadentes, esquecidas, periclitantes, procurando o seu próprio reflexo. Como se a ferida interior “que talha a carne em duas” se apaziguasse nesse fito magnético às coisas idênticas, procurando reconhecer-se tocando a sujidade do chão. 

Belo abismo.

3.

PESICKEATREA MENTAL 

(segundo voo rasante)

Os bichos, esses, variam de corpulência. Polvos moles com os tentáculos desenhados pela gravidade; cavalos a perder de vista, muitos cavalos, cavalos bélicos e viris, cavalos assustados de crinas erguidas ao vento a lembrar garranos de laboreiro; cães espantados, dilacerados como trutas numa travessa; mariscos esperneantes. Tudo isto a arder em vários tons — castanho-amarelado, vermelhos-alaranjados, amarelos-acastanhados — dando ao grão microscópico das imagens a branco e preto o fulgor de certos minérios. Encenações de morte ou de rituais perto do fim: pernas pendentes, crispadas, ausentes.  

4.

EXÉQUIAS DA MAGIA 

Após o desaparecimento do objecto, quando apertamos as pálpebras, do fundo luminoso e vazio aparece (de novo) a imagem da coisa vista, embora mais obscura, escorregadia ou evanescente. A memória tal como a imaginação são porventura sensações enfraquecidas. Imagens preservadas no armazém mental depois da desaparição do acontecimento compõe a natureza decadente da memória: desenvolvem a fantasia. 

O que acontece à fantasia quando as imagens latentes (por trás das pálpebras ou ufanamente gravadas na memória) nos reaparecem anos mais tarde com a nitidez de um cristal na superfície de uma fotografia revelada? 

5.

PESICKEATREA MENTAL 

(terceiro voo rasante)

O foco é a noite, os reparos. Com as suas metamorfoses de luz.

Há também rastos, restos e fendas. Coisas esquecidas, pousadas, caídas, abandonadas. Pode-se enumerar em voz alta: um travessão no lençol, umas cuecas pretas no chão, um saco de plástico no chão ou preso nos ramos de uma árvore, um colchão nas folhas de outono, um copo de cerveja no corrimão. 

De supetão o flash de luz isola a pele brilhando as linhas cruzadas da tatuagem, descobre-lhes a intimidade na superfície de pedaços de corpo velados. Um jogo de confidências: desfoques, grânulos, poros, breves reentrâncias, geometrias, figuras. O cinza permite essas nuances, leves ou carregadas segundo certas posições: antebraços, tornozelos, costas. 

A temperatura aumenta com os brilhos recolhidos dos candeeiros, dos vestidos, dos cristais, dos vidros e espelhos. A densidade luminosa altera-se nas coisas de idêntica exposição e nos feixes de reflexos que o grão ajuda a sublinhar discretamente. 

No meio da multidão, a explosão alastra-se sem ruído: um grito dançante, faz-nos ouvir a música. Outra vez a música, o som, o ritmo, a distorção, a trepidação do corpo. 

6.

NA VARANDA DE SEMPRE

Arnaldo Antunes, confidente destas noites, canta no seu Socorro:

Socorro, alguém me dê um coração
Que esse já não bate nem apanha
Por favor, uma emoção pequena
Qualquer coisa

Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva
Qualquer coisa que se sinta.

Socorro, alguma rua que me dê sentido

Em qualquer cruzamento

Acostamento, encruzilhada

Socorro, eu já não sinto nada

Resta apenas a noite. E o fotógrafo afasta-se, passo a passo, por dentro da madrugada. Acaba por desaparecer no fumo do último cigarro, na varanda de sempre, à espera da alva incandescente que ilumina as primeiras árvores.

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