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Piet no outlet

[Texto produzido no âmbito do projecto de pintura “Uniformes” de Vitor Israel apresentado na Kubik Gallery no enquadramento da “Colectiva de Verão”, Porto, 2013]

 

Ante-câmara (Recordação)

Quase todos os cafés da minha aldeia, para além dos troféus dos campeonatos amadores de futebol 5, expunham por cima da máquina de café uma colecção desbotada e amarelecida de uniformes desportivos, por vezes acompanhados de chapéus. Ora pendurados em cabides, ora encaixilhados em molduras douradas com vidros, quase sempre autografados por quem os vestiu.

 

PIET NO OUTLET

O Israel disse-me, no atelier, que um dos pretextos para os seus “Uniformes de tela” foi um certo fascínio pelo trabalho gráfico de uma artista russa (lituana em rigor), por sinal casada com Rodchenko, Varvara Stepanova.
Desconhecia-a confesso, o que me levou a uma pesquisa duplamente entusiasmada.
Varvara integrou activamente a cena Construtivista (Rodchenko, Popova, Aleksei Gan) que então despontava na senda da reconstrução europeia após o colapso da I Guerra Mundial.

Tanto Varvara Stepanova como todos os artistas militantes do programa ideológico Construtivista tinham um propósito tão claro quanto revolucionário: qualquer gesto artístico em vez de apontar para o espírito do indivíduo deverá dar as mãos com a fábrica na construção de uma sociedade melhor. Este vínculo com a indústria levou-os peremptoriamente a desviar as suas práticas para meios que se ligavam de forma mais premente com a técnica: design gráfico, fotografia, textil, posters, propaganda política.

Varvara defende inclusive, num texto associado a uma exposição de arte abstracta intitulada 5×5=25 (Moscovo, 1921), a composição como a única abordagem contemplativa possível do artista, assim como, adverte para o facto de tanto a técnica como a indústria terem confrontado a arte com o problema da construção como uma ideia de acção e não de reflexão. Este enunciado bárbaro, sem precedentes históricos, pressupunha uma dissolução absoluta do objecto artístico como entidade única e aurática.

Porém quando o Vitor Israel nas suas pinturas pega nas linhas gráficas de um uniforme de Stepanova para ensaiar uma plêidade de trinta e cinco variações cromáticas e compositivas traz, inevitavelmente por arrastamento, para além de todo um imaginário popular ligado aos uniformes do futebol ou de qualquer padrão da moda, todo este contexto ideológico do artista proletário que prefere a fábrica à espiritualidade da galeria.

O mais curioso é o facto do artista em causa não vestir esta camisola, aliás ironicamente inverte a situação colocando os uniformes (ou a sua representação pictórica) na parede da galeria devolvendo-lhes a contemplação que outrora Stepanova e companhia tentaram irradicar.

Deste modo, Israel coloca-nos perante um aparente imbroglio: posicionarmo-nos como consumidores perante uma espécie de catálogo de produtos excedentários de outlet, mas com Piet, Wassily e Kasimir na cabeça.

 

Samuel J.M. Silva 10 Julho de 2013

 

 

*O presente texto deve ser impresso a vermelho porque foi escrito a sul do Tejo.

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