[Texto sobre a exposição “Cinco filmes e uma máscara” de Ricardo Jacinto na Galeria Cinemática – Solar, publicado na revista digital “Contemporânea”]
https://contemporanea.pt/edicoes/09-2018/ricardo-jacinto-cinco-filmes-e-uma-mascara
Reposições, cataclismos e sombras esquivas
Desde 2015 que a Galeria de Arte Cinemática – Solar e o Festival de Artes Performativas – Circular, duas das principais programações culturais da cidade de Vila do Conde, têm encontrado um espaço de trabalho comum assente numa lógica experimental e transdisciplinar visando a apresentação pública de projectos e autores contemporâneos. O mais recente exemplo desta aliança programática é a exposição individual de Ricardo Jacinto na Galeria Solar.
Um projecto expositivo onde o artista e compositor português ensaia no espaço labiríntico da galeria vila condense uma reposição de projectos fílmicos antigos, apresentados em exposições como O Corredor no Chiado 8 em 2011 e Parque: os cones e outros lugares no Centro Internacional Artes José de Guimarães em 2014, acrescentando um novo filme – 333 partes e 37 segundos (2018) – e dois elementos escultóricos que contaminam os intervalos entre as experiências de visionamento, procurando dar unidade e consistência ao percurso expositivo.
A confluência de diferentes linguagens expressivas, o experimentalismo perceptivo e a exploração de acções colaborativas ou de criação colectiva (Parque 2001-2007) conferem ao corpus de trabalho de Ricardo Jacinto uma singular complexidade e um carácter imprevisível que o transformam num dos autores mais estimulantes da sua geração em Portugal.
Exemplo perfeito dessa organicidade operativa é o filme Os cones (2015), uma interpretação livre de um texto de Hugo Brito – The Left Hand (2006) – onde uma personagem solitária escreve um conjunto de cartas dirigidas a alguém, laconicamente designado por W., sobre um território incerto, sem tempo nem lugar, de onde emergem formas arquitectónicas cónicas de aparência totémica e em permanente instabilidade. A música sendo recuperada de uma performance sonora do Colectivo Parque, realizada em 2003 na Fundição de Oeiras, intensifica o ambiente enigmático da narrativa visual. Em síntese: uma imaginação fílmica de um objecto literário de outro autor é, por sua vez, contaminado por uma paisagem sonora de um evento anterior em que Jacinto participa como músico.
Na continuidade expositiva apresentam-se dois filmes que diríamos dípticos – A história do pinheiro e do lobo (2015) e A história da água e do avião (2015) – parentes sobretudo na sua estrutura interna de carácter dualista. O primeiro confronta duas narrativas distintas, por um lado, no silêncio profundo de uma câmara anecóica, escutamos os uivos de um imitador de lobos, por outro a estridência rítmica dos tambores nas festas nicolinas em Guimarães. No segundo filme temos da mesma forma uma estrutura maniqueísta, onde filmagens de atletas de natação sincronizada são interpostas por imagens de um piloto enclausurado num simulador de voo. Ambos experimentam aparentemente o confronto de universos opostos, a concentração e isolamento do indivíduo, na pele do uivador ou do piloto de aviação, versus a performatividade sincronizada do colectivo, seja na figura dos tocadores de bombos no enterro do pinheiro, seja nas atletas de natação. O som, aqui entendido como veículo de transcendência ou instrumento disciplinador do gesto e acção humana, surge como estrutura seminal em todas as micronarrativas apresentadas transformando estes dois filmes em objectos xifópagos.
O último núcleo reserva-nos um conjunto de três projectos que concretizam de forma mais eficaz a ideia de porosidade e contaminação que Jacinto parece querer experimentar em Vila do Conde. Como antecâmara dos filmes In a rear room (2009) e 333 partes e 37 segundos (2018), mergulhamos num ambiente escuro de onde emerge suspenso um objecto ambíguo de feições orgânicas – Máscara (2009) – cujo dramatismo da iluminação e delicados movimentos gerados pelas deslocações dos espectadores, recriam na parede uma poderosa sombra instável e mutante. Um artefacto pleno de performatividade que nos prepara para a última sala onde a indeterminação do piano de In a rear room (2009) dialoga com a destruição criativa de um violoncelo em 333 partes e 37 segundos (2018). Este último projecto, o mais actual e actuante, exibe um sedutor esmagamento de um instrumento musical por um cilindro de compactação. É impossível não ficarmos siderados pela antítese do avanço impetuoso do cilindro face à delicadeza dos pequenos sons, produzidos por microfones de contacto acoplados ao violoncelo. Após este cataclismo inicial toda a restante narrativa revela imagens estáticas dos estilhaços do instrumento, numa espécie de pulsão sistemática e arquivística. Um filme que, salvas as devidas distâncias, faz eco de uma linhagem de autores, da segunda metade do Século XX, cujos projectos exploraram formas radicais de experimentação plástica e sonora de instrumentos musicais. Lembremo-nos das acções Fluxus nomeadamente as Piano activities de Philip Corner (1962), as experiências de Nam June Paik com Action with violin on a string (1963) ou até mesmo a citação deste último por Christian Marclay em Guitar Drag (2000). Em todos os projectos citados, como no filme de Jacinto, o manuseio do instrumento contorna os cânones clássicos e tradicionais sendo substituído por uma atitude subversiva (punk?) de rejeição de regras expandindo o campo sonoro através de novas formas de performatividade com o instrumento (que implicavam muitas vezes a sua total destruição).
As peças de Ricardo Jacinto são habitualmente dispositivos que desafiam a arquitectura convocando o espectador para experiências perceptivas – visuais e/ou sonoras – limite. Em “Cinco filmes e uma máscara”, título da exposição na Galeria Solar, o autor abdica dessa tarefa de transformação espacial com fito na intensificação da experiência física e perceptiva da audiência, para oferecer um trajecto retrospectivo por uma série de trabalhos, concentrando o foco na subjectividade das ligações conceptuais entre filmes, para além das contaminações simbólicas entre as narrativas e os elementos escultóricos apresentados, sejam eles um megafone gigante ou uma máscara com sombra esquiva.