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Até que a morte nos separe.

 [Texto publicado na revista digital “Contemporânea”, por ocasião da exposição “O ontem morreu hoje, o hoje morre amanhã”, organizada na Galeria Municipal do Porto por Carla Filipe e Ulrich Loock]

https://contemporanea.pt/edicoes/07-2018/ate-que-morte-nos-separe

 

Até que a morte nos separe.

A recente exposição que Carla Filipe e Ulrich Loock organizaram no mezanino da Galeria Municipal do Porto é uma insurreição à fugacidade e dispersão da cultura nocturna nas suas manifestações sonoras e visuais. O ontem morreu hoje, o hoje morre amanhã, título da exposição, sublinha desde logo a impermanência das palavras, imagens e sons que o entretenimento da la movida procura compensar na nossa existência extenuada. A própria palavra “entreter” parece revelar-nos essa suspensão de nos manter entre qualquer coisa (entre-ter) que na maioria das vezes resvala no esquecimento. Esta exposição traz para a luz do dia e para o olhar mais reflexivo do que flutuante todo um repertório noctívago, heterogéneo e disperso de cartazes, serigrafias, fanzines, capas de discos e cassetes, revistas, vídeos, entre outros objectos que circularam pela cidade do Porto nas últimas duas décadas depois da hora de jantar. Há, todavia, mais do que uma geografia precisa, uma assunção autoral e por isso assumidamente facciosa: trata-se da noite do Porto pelos olhos e ouvidos de Carla Filipe.
Todo o universo estético da autora contamina o desenho da instalação: desde a plasticidade do lettering das fichas técnicas pintadas nas paredes às almofadas serigrafadas; dos grandes tecidos-painéis à fotomontagem do desdobrável, tudo parece gravitar em torno de um centro magnético e referenciador que é o próprio trabalho de Carla Filipe. Aliás, a própria clarifica numa espécie de didascália pintada na parede: “Carla Filipe / no artist-curator invited / Ulrich Loock”. Uma tomada de posição algo inversa às convenções expositivas, neste caso particular não é o curador que convida o artista, mas o seu contrário, o que desde logo inverte todo um sistema de produção e pensamento subjacente à realização de exposições.
O mote surgiu por parte da Galeria Municipal do Porto que desafiou Carla Filipe a desenvolver um projecto expositivo sobre as práticas sociais em clubes e bares, enquanto espaços de fuga à falência iminente dos sistemas sociais diurnos. A resposta surge no formato de uma exposição-ensaio onde a artista convidou uma comunidade de autores que nos últimos anos têm operado nos interstícios dos espaços sociais nocturnos da cidade do Porto transformando-os em arenas de compromisso e trabalho onde os atributos lunares — preconceito, equívoco, convívio, evasão, excesso, liberdade, diversão, hedonismo, ingenuidade, sedução, agressividade, narcisismo —convivem com a experimentação plástica, gráfica e performativa associada à música. Sempre associada à música. Esta parece ser o lençol freático que perpassa por todos os objectos e autores apresentados. Mas também pelos corpos que atravessam a abstracção da(s) noite(s). E é, precisamente, essa abstracção que a dança produz que abre e fecha a exposição, seja nos desenhos a tinta da china de Carla Filipe (Dança existencialista, 2016-7) onde encontramos o corpo da própria artista a dançar num fundo de fragmentos textuais, quiçá palavras soltas que frequentam o nosso imaginário quando dançamos, seja na frase derradeira da exposição onde lemos “The night was the place of abstraction through the dança! Please don´t talk/speak”.
As vizinhanças estéticas dos artistas expostos são evidentes e assumidas. O objectivo parece claro por parte de quem pensa a exposição: afirmar uma constelação de autores que, não obstante as suas singularidades (pois só assim se poderá afirmar um colectivo) e distâncias contextuais, encontram ecos e afinidades nas suas formas de imaginação e criação. Desde logo a influência do universo Pettibon — presente na exposição com as famosas capas de discos que realizou para os Black Flag ou Sonic Youth, para além de múltiplos e fanzines apresentadas nas vitrines — nos percursos de Mauro Cerqueira, Von Calhau!, Marta Ângela (Papagrafik), Rudolfo, João Alves ou a própria Carla Filipe. Desenhos a preto e branco marcadamente irónicos de feições naïfs e na esteira da BD coabitam com escritas (caligrafias?) iminentemente visuais de sentido provocador e de leitura por vezes ambígua. Nem mesmo a maravilhosa simplicidade das composições caligráficas dos cartazes que Dayana Lucas realizou para a Favela Discos no Café au Lait (2016) ou a selecção de textos publicados por João Alves Marrucho entre 2004 e 2007 e agora reeditados em formato cartaz — com anotações e gracejos subversivos — escapam à atmosfera “trash” que Ray Pettibon e seus herdeiros lançam na exposição.
Para além de Ray, surgem outras presenças internacionais cujos trabalhos propõem relações com a música, por exemplo Verkaufen de Jürgen Drescher & Reinhard Mucha, onde um bar abastecido de bebidas com aspecto sofisticadamente precário munido de ventoinha e música de Frank Sinatra contrasta com um painel de vidro pintado que um olhar apressado pode confundir com um típico hich-tech LCD. Num outro plano o videoclipe Freezer convida-nos a conhecer a colaboração videográfica de Wolfgang Tillmans para uma composição sonora de Oscar Powell, onde imagens da natureza são interrompidas por fotografias de agentes da autoridade, uma espécie de confronto entre beleza e opressão.
Enigmática é a evocação das construções ideográficas do pintor holandês René Daniels através de uma composição de arquétipos (pintados pela mão de Carla Filipe) — múltiplos microfones, uma garrafa, uma silhueta humana e aquilo que parece ser uma câmara de vigilância — somados a um jogo gráfico-fonético com o nome René e o verbo “renascer” que convoca liminarmente o renascimento artístico de Daniels após ter sofrido um aneurisma cerebral aos trinta e sete anos. Talvez aqui encontremos as metáforas mais justas para a nossa relação com a noite: a morte e o renascimento.
O final da exposição reserva-nos Motordromo de Diogo Tudela e Basic Year de Tomé Duarte. Enquanto Tudela ensaia um aparato sonoro dromológico que explora as potencialidades do cobre (densidade, resolução temporal e espacial) enquanto elemento basilar da tecnocultura, Tomé Duarte apresenta um conjunto de fotografias compiladas num formato GIF projectadas em loop revelando uma sequência ininterrupta de auto-retratos dentro de cabines de elevador a fazer lembrar a cultura das “selfies” ou os ambientes narcísicos que caracterizam o espírito nocturno.
Numa poltrona existe ainda a possibilidade de escutar (numa escuta que merece ir para além do ouvido) uma cuidada selecção de projectos musicais de acentuada inclinação experimental, elaborada por Valdemar Pereira, que emergiram na cena portuense nas duas primeiras décadas do século XXI, alguns deles pretexto para as formulações visuais presentes na exposição.
Apesar do escopo deste ensaio expositivo, anunciado numa discreta frase na obra Fim de texto de Carla Filipe, ser “uma tentativa de construir algo sólido / contrariar a liquidez/ construir memória recente/ criar ecos”, sabemos que qualquer esforço de captura de um tempo passado cairá sempre na evidência que só o instante actual nos pertence, mas talvez seja essa tarefa de resistência e descontinuidade com o real ­— na sucessão alienada de acontecimentos — que nos reenvia para uma existência mais autêntica e transformadora.

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