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… este espaço é vosso também. Podem mexer. Uma conversa entre 3 amigos.

[Conversa realizada no atelier do Carlos Nogueira a seu convite no dia 16 de abril de 2021. Entramos no espaço com o intuito de escrever um texto individual sobre o seu local de trabalho para integrar uma futura publicação. Depois de uma breve visita, ficamos sós, inundados por um silêncio profundo. Decidimos conversá-lo.]

*

Samuel Silva: Eu também fiz questão de vir vazio. Era mais fácil porque não tive a experiência que tu tiveste (…) eu pensei que o Carlos ia estar sempre connosco (…) Gostei muito desta ideia de ele abandonar o lugar e isso dá-nos o conforto de nos sentirmos quase…

Álvaro Moreira: … em casa…

SS: … aberta, generosa.  

[“Este espaço é vosso também, podem mexer…”]

AM: É, se calhar, até uma abertura mais franca que uma conversa ou uma partilha de intimidade. De entrar no silêncio dele, no último reduto. Aqui está o espírito da vida dele.

SS: Não é por acaso que falaste dessa experiência do silêncio no atelier do Alberto Carneiro, salvaguardando as distâncias, ele de repente saiu e ficamos sós…

AM: … como que imbuídos dos seus pensamentos mais profundos. Do ponto de vista mais emotivo e intelectual, a existência dele concretiza-se mais neste espaço do que propriamente em casa, onde esta é sempre mais negociada e condicionada por terceiros.

SS: …pela gestualidade funcional do quotidiano, do trato do corpo… enquanto que aqui estamos perante uma gestualidade simbólica, uma procura de encontros, de emoções. Estes são objetos que estão em pousio para se transformarem numa outra coisa; estão à espera…

AM : Quase uma dimensão elemental do espaço criativo.

[AM: Vamos gravar esta conversa?

SS: Já está a gravar desde o início.]

SS: O que eu senti de imediato foi, talvez pelo condicionamento do espaço, uma certa ideia de camadas de tempo. Tu vês aqui resíduos de situações performativas, como por exemplo, aquelas flores de papel apresentadas na Bienal de Cerveira, ao lado de um trapilho que está à espera de ser intervencionado. Ao lado uns paus, que são uma espécie de pós-obra… e esta convivência entre matérias à espera de serem obra, obras que se devolveram à condição de matéria, aparentemente convivem numa espécie de desierarquização de camadas de tempo.

AM: … uma suspensão entre existências…

SS: Aquilo, por exemplo, já não é mais que uma tábua que está há 40 anos com o Carlos e, como ele diz, “pode vir a ser qualquer coisa” ou “isto são coisas que estão a nascer”.

AM: … algumas há muito tempo. Sempre me interessou esta forma, quase antropológica, de resignificação dos objetos que se transformam ao longo do tempo e que nunca são exatamente o que representam. Esta condição é, na obra do Carlos,  uma coisa sempre muito presente. Eu vejo nesta última fase, um ressurgimento da cor, um elemento pouco comum em toda a obra, dissonante do seu percurso minimal, que é uma espécie de retorno a uma infância, a um encantamento, a uma descoberta…  agora sem pudor  e complexos.  Embora estes recetáculos que vemos nesta mesa obedeçam às mesmas configurações, à mesma lógica das caixas, da casa, do espaço fechado, estão a resplandecer com cores, com uma aura diferente!

SS: Por outro lado, há sempre no trabalho dele uma geometria, um rigor. Há uma preocupação matemática com as coisas, com os números – “São 45 fotografias, porque 5+4 dá 9” –  é como pedir que algo exterior tome a decisão por ele.

AM: … seja imposta por uma geometria abstrata.

SS: Uma abstração que determina uma regra. Essa obsessão por uma ordem matemática, de rigor e exatidão, que lhe é imposta por algo exterior é contraposta por formas entrópicas. Este chapéu que era da avó e que tem forma indefinida; este “Menir” que esteve na exposição de Santo Tirso que é uma coisa disforme ou este arame que é um rio que não são coisas geométricas. Até nestas tábuas que estão postas geometricamente umas sobre as outras pousou um arame contorcido. Este convívio de coisas altamente rigorosas com elementos sinuosos, orgânicos….

AM: … femininos…  Eu vejo essas formas curvas, arredondadas como um elemento atávico de natureza feminina. Em alguma medida comparável com a representação do ciclo da vida, da natureza que de vez em quando aflora na obra do Carlos de forma instintiva.

SS: Talvez por termos conversado tanto sobre estes signos, sobre estes elementos primordiais, de representação de olhos, rios, sol… Há tempos li uma coisa sobre neurociência onde descobri que nascemos já com memória. Chama-se filogenética. Uma dessas memórias designam-se cinesias que são de uma ordem quase instintiva como a locomoção.

AM: … que depois se desaprende.

SS: Determinados reflexos e instintos codificados que vêm dos nossos antepassados e que se ligam à sobrevivência da espécie humana. Fico a pensar se não teremos inscrito na nossa memória determinados movimentos instintivos que não querendo representar surgem inconscientemente nas nossas representações. São arquétipos ancestrais, são formas, gestos identificados com formas primárias transgeracionais e que migram no espaço e tempo independentemente das geografias, culturas, línguas, tradições…  Aqueles arames que são rios no fundo representam isso mesmo.

AM: Há interpretações ligadas às primeiras representações pictóricas da humanidade que radicam nalguns estados voluntários de semi-consciência induzidos por transe que, através de movimentos ritmados e constantes, produzem determinadas imagens como pontos, círculos e meandros. Estas formas que não conseguimos determinar a origem são devidas a uma pré-consciência. Transposto para um outro conceito que nos empresta a Ecologia e que em alguma medida é comparável com determinadas formas geométricas a que se associa a “casa”, o “habitat” ou, em última análise, o “espaço vital”, é o da filopátria.  Trata-se de um conceito que explica a migração das aves que implica o retorno ao local de nascimento. Hoje cientificamente demonstra-se que estas retornam exatamente aos mesmos locais onde nasceram para nidificar, por vezes com distância de metros, sem que isso seja um conhecimento apreendido por transmissão ou imitação.

SS: São taxias, formas mais sofisticadas de orientação que podem ter a ver com o domínio cósmico, o sol, a luz, temperaturas, etc.

AM: Eu vejo que há formas que se associam à casa, à caixa, à protecção que tem a ver com esse retorno. A filopátria.

[silêncio]

SS: Eu tendo sempre a desconfigurar aquelas categorias rígidas que são feitas a partir da obra do Carlos. Aliás o próprio a considera entre uma primeira fase sobre o esbanjamento e uma segunda sobre a contenção. Às vezes interessa-me mais identificar linhas de força que resistem a essas divisões. Uma das coisas que eu identifico é a cor que, embora possa estar mais explícita atualmente, é absolutamente crucial desde o início. Repara nos pássaros, como o pau é pintado de um azul específico que ele usa recorrentemente no trabalho, ou por exemplo nos lápis de cor para pintar os dias cinzentos. Mesmo quando faz uma certa decantação onde ele usa as cores neutras há na mesma uma preocupação com a cor, o contraste, a percepção da luz, sombra. Eu não vejo que a cor seja uma coisa que apareça, desapareça e reapareça, mas identifico muito mais uma lógica de continuidade como um lençol freático. E não é só a cor, há outras continuidades como a palavra. A importância da poesia, a importância dos títulos.

AM: E a poesia mais minimal.

SS: Haiku?

AM: Exatamente. Eu vejo nestas esculturas do Carlos um minimalismo muito influenciado por essa poesia. Vejo que a sobriedade das cores em alguns dos trabalhos tem esse vínculo de austeridade que não permite distracções. Uma depuração levada ao limite.

SS: Não só nos títulos mas também nas anotações rápidas em determinados desenhos preparatórios ou como no famoso verso do Camões sobre a mudança, escrita quase de forma inssureta na parede. Ou, ainda, nos postais onde brincava com as palavras.  Há em tudo isto uma relação com a poesia experimental, num certo desejo que a palavra não se leia apenas, mas também se veja. E para mim foi espantoso reconhecer isso.

AM: É quase um elogio às coisas necessárias. A poesia e a palavra dele têm essa intenção de filtrar as coisas ao essencial. Uma depuração que a obra escultórica e literária ambiciona. Eu vejo os títulos como pequenas esculturas.

SS: Isso. São antecâmaras de significação que te oferecem uma referencialidade.

AM: Uma intenção com revestimento poético de mensagem subliminar. 

[silêncio]

AM: Eu gostava de lhe perguntar como explica o impulso criativo. Primeiro o da comunicação, depois o impulso da criação e o retorno implícito.

SS: De onde vem essa urgência, não é? A Lourdes Castro uma vez confessou-me que é a necessidade de auto-conhecimento. O trabalho artístico não ser mais nada do que uma eterna procura de se conhecer melhor. É uma pergunta de difícil resposta.

Sendo eu artista, acho que é uma necessidade de um mundo interior, de uma espiritualidade no sentido de termos um dentro. É comum a todos nós e que pode ser materializado de diferentes formas, num desporto, num hobbie, na profissão, etc. Essa espécie de procura de ter uma profundidade interior, de imaginação, de liberdade, de encontro connosco. Eu pelo menos sinto isto. Aquilo que me impele a ir para o atelier  fazer coisas é o desejo de habitar o dentro. É, verdadeiramente, um ato solitário de grande intimidade, de insegurança e incerteza. Um ato muito vulnerável, portanto. Por isso este gesto do Carlos ao abrir o atelier a estranhos e partilhar as coisas que ainda estão a nascer é absolutamente destemido e corajoso.

AM: É o último reduto da intimidade, da dimensão de uma necessidade quase ascética de produzir e de se confrontar com as suas vulnerabilidades.

SS: Retomando a tua questão. O que leva o Ser Humano a representar dentro das grutas, a religar-se a entidades, enquanto outros caçavam? Porque não era suficiente alimentar-se e reproduzir-se? Qual é essa necessidade? Penso que esta seja a reverberação da tua pergunta.

O Joseph Beuys escreveu o livro “Em cada homem um artista”. O que ele nos chama atenção é para essa dimensão em potência que todos nós possuímos, uma capacidade de imaginação. Todo o Ser Humano é munido desse potencial quando nasce. O artista é uma espécie de alguém que faz uma sofisticação desse processo que eu acho que é inerente e alcançável por qualquer um de nós e que se manifesta em cada um de formas diversas. Há pessoas que canalizam essa energia para outras acções, essa crise que a garatuja inaugura na infância que é a necessidade de expressão. É uma ferida incurável. Os artistas são os atletas de alta competição dessa capacidade de expressão. Não há outra forma de nos humanizarmos que não seja por via da cultura, da potência da sensibilidade.

AM: A pergunta a que me referia e que trouxe para a conversa há pouco não ambicionava uma resposta mas talvez suscitar outras, como por exemplo: o que falta fazer? o que falta depurar? o que falta questionar?

SS: Percebi, seria uma pergunta mais prospetiva. Voltando ao Carlos. Estava a pensar na importância do espaço para além da cor. Por exemplo, vemos aqui uma instalação arrumada num canto, mas faltam as distâncias, os vazios que milimetricamente são determinados. O Carlos é exímio na forma como namora os espaços para encontrar linhas, frestas de luz, reflexos, orientações, alinhamentos. Todos esses espaços vazios ele depois não os guarda. Guarda os objetos mas esses alinhamentos, reflexos ou frestas não. É uma dimensão invisível. Estas geometrias espaciais nunca se guardam.

AM: Elementos exteriores que dão lógica, razão de ser e escala. Um bom exemplo é a peça que produziu para a inauguração do Museu em Santo Tirso, onde é muito patente essa exploração exaustiva  do espaço, dos alinhamentos, da iluminação, dos distanciamentos entre a própria peça e as perspetivas que proporciona.

Esta peça retoma a nossa conversa anterior sobre determinadas obras fundamentais no percurso de um autor que depois originam réplicas, desdobramentos, reinterpretações.

SS: É a ideia crucial de que um artista faz apenas três ou quatro trabalhos na vida. Não tenhas dúvidas.

AM:Vemos isso na peça de Vila Nova da Barquinha, na de Santo Tirso, a que se sucederam outras como por exemplo a da Capela do Rato. E de vez em quando assumem uma complexificação mais elaborada.

SS: Nessa filiação que falas e que se encontra em determinadas veredas de investigação percebemos que as últimas são muito mais sólidas. Há nas derradeiras um conjunto de conhecimentos mais sistematizados, todavia a primeira, a mais frágil e insegura, é eventualmente a mais importante. São as essenciais, as que fazem uma inflexão, criam novos paradigmas.

(…)

Ah! Já me lembro o que queria formular há pouco e não fui claro. Há uma geometria velada nos trabalhos do Carlos que quem assiste a um processo de montagem  percebe. A peça fica ali, tudo fica invisivel mas inconscientemente essa geometria atua sobre ti. Redescobrem-se linhas, luzes, pequenas subtilezas que estão completamente veladas e que se manifestam silenciosamente. Essa geometria invisível não se guarda aqui dentro (atelier). Uma espécie de dimenso ﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽enseria dentro (atelier). Uma espo forma mais ecxplicita a um olhar preparado e conhecedor mas inconscientemente todo ão imaterial que não cabe aqui.

Enquanto autor é para mim a sua grande lição, essa valorização de um rigor invisível.

AM: Penso mesmo que essa geometria invisível é também transposta para os livros.

A fórmula encontrada é afim e complementar dos conteúdos.

Essa geometria que referes é equilibrada com elementos orgânicos como os rios que nos transportam para uma outra dimensão. Como esta montanha que está aqui debaixo da mesa, colocada outrora junto da “Casa comprida com luz” construída para Santo Tirso.

SS: Que equilibra esse rigor, não é? Porque oferece o disforme, o entrópico. Eu prefiro dizer disforme a não-forma.

AM: Que tem um propósito de potenciar tanto essa geometria invisível como de nos resgatar dessa rigidez funcional. Vejo esses elementos como agentes salvadores, em alguma medida equilibra-nos nessa viagem.

SS: São a festa! São o esbanjamento! Nas próprias sociedades antigas a festa fazia suspender as regras, as rotinas, o protocolo. Era a libertação da libido.

AM: A suspensão das hierarquias…

SS: Eu penso que estes elementos, aliás, funcionam como válvulas de escape, de libertação ou canalização de energia. De uma energia que desobedece à regra e à geometria pré-estabelecida.

AM: E que nos reposiciona para o todo. Um contra-peso.

SS: É curioso que o Carlos teve a necessidade de colocar esse elemento (a montanha) que não tem uma única linha direita mas foi posicionado estrategicamente no espaço. O caso de Santo Tirso permitiu-me redescobrir a arquitectura do Siza. Perceber linhas de força, encontros geométricos, confluência de energias. Apercebi-me de diagonais, paralelismos, linhas que organizam o interior do espaço a partir de fora do Museu.

AM: Para além da dimensão conceptual da peça ela descobre e potencia a arquitetura em perspetivas não muito óbvias até para o próprio projetista. É um trabalho intelectualmente muito generoso.

     – FIM –

Álvaro  Moreira | Samuel Silva

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