(Texto para folha de sala de Fernando José Pereira)
Vivemos o nosso quotidiano numa espécie de paradoxo existencial: nunca houve tantas imagens a circular e nunca vivemos uma crise tão forte na produção das imagens. As imagens da arte e dos artistas têm, por isso, uma responsabilidade enorme. São as imagens que não pertencem à torrente da comunicação, são as imagens que querem fugir dos spotlights e refugiar-se na sombra, como dizia Perniola, são, para continuar com o autor italiano, as imagens que se encontram dentro da cripta.
E, contudo, mesmo as imagens da comunicação banalizaram-se de tal forma que se tornaram numa espécie de organismos autofágicos. A duração da sua materialidade é diariamente posta em causa pela invasão das para-imagens digitais do universo virtual. Um olhar menos distraído já reparou na quantidade de outdoors vazios nas margens da auto-estrada. Aparentemente deixaram de fazer sentido…a sua obsolescência é considerada efectiva. Ao que parece já estão a ser substituídos por écrans de pixels…
Quer dizer, de obsolescência em obsolescência, chegamos a um ponto em que os mupis e talvez os outdoors (objectos típicos da imagem publicitária) já encontram refúgio como objectos simbólicos num qualquer espaço expositivo.
A obra do Samuel Silva nos Maus Hábitos levanta-nos todas estas questões da forma que tão bem a arte sabe fazer (quando quer) …os mupis instalados no espaço expositivo desta instituição, através da intervenção do artista diluíram-se no todo instalativo que ali ergueu. Trata-se de uma instalação na sua mais pura relação com a significação do termo: uma obra que ocupa o espaço instalando-se nele, alterando-o. Ao fazê-lo, o artista remeteu os protagonistas habituais destas exposições, os três mupis aí existentes, a meros elementos de um todo que é muito mais que isso. Mas, ao mesmo tempo, elevou o seu carácter simbólico a uma possível posição aurática e, ao realizá-lo, distanciou-os do seu território original para os integrar num outro: passaram da sua condição de objectos úteis a uma nova condição já não objectual mas, antes, como parte integrante de um todo simbólico. A alteração da sua funcionalidade para uma pretensa inutilidade simbólica é aqui, por isso, determinante. É ela que potencia todo o espoletar das leituras significacionais da obra.
Toda a instalação se concentra numa das bases fundacionais de todas as imagens: a luz. Seja no alumínio que reveste todo o espaço invadindo, inclusive, as imagens que reflecte a luz, sem, no entanto, ser especular. Escolha importante do artista que, assim, evita qualquer relacionamento narcísico individualista (a relação com o espelho foi, também ela, alterada pela informação digital: a selfie realidade é um espelho contínuo que, aqui, contudo, se encontra absolutamente desfocado. O material escolhido pelo artista não é especular é antes reflector da luz. Luz que dá vida a algumas das imagens. Desde logo, na primeira: imagem vazia, imagem essência, luz branca. Mas, também, em algumas das outras. A luz que vem de trás dá-lhes um relacionamento directo com o ecrã. Talvez por isso, o artista tenha decidido colocar a única imagem que não se encontra truncada num posicionamento exterior a qualquer aproximação à visão da comunicação digital: uma imagem que é banhada pela luz que a ilumina e que, assim, nos dá a possibilidade de a fruir.
Não por acaso, a imagem de que vimos falando e que é repetida quatro vezes é a de um candeeiro de um espaço público. Um objecto produtor de luz. Uma tautologia, portanto. Mas da maior importância. O candeeiro que ali vemos está virado ao contrário. Tal como o anjo da história benjaminiano, também ele se encontra em posição oposta ao progresso, ou à catástrofe que o anuncia. Das várias alterações a serem introduzidas ao sabor do “progresso” e, no entanto, apenas subordinadas ao económico, nada se interessando pelas pessoas ou por qualquer prejuízo que daí advenha (como, inclusive, já sabemos), uma delas é a que está a ocorrer com a iluminação do espaço público: os novos candeeiros funcionam com grupos de leds minúsculos (pixels luminosos) que estão a produzir uma desrealização da própria realidade: a sombra que produzem, por exemplo, de uma árvore, é uma imagem pixelizada desse elemento da natureza. Quer dizer, objecto e a sua sombra já não coincidem, a última é, agora, apenas uma imagem virtual. A posição invertida do candeeiro das imagens da obra do Samuel é, antes de mais, disruptiva pelo seu posicionamento, mas, é-o, sobretudo, pela desactivação que efectua em todo o deslumbramento contemporâneo com as novas formas de luz.
E, aqui, voltamos ao nosso paradoxo inicial: a imagem orgulhosamente analógica do início de um rolo de fotografias, imperfeita, não retocada é a chave para todo um questionamento do contemporâneo. O Samuel chama-lhe “sábado”. A obra que construiu apela ao tempo para a reflexão, apela à sua contemplação. Apela…apenas. O Samuel como todos os artistas tem a chave da cripta, mas, como nos dizia Peniola, não nos oferece a chave para entrarmos. Prefere o enigma ao vazio do todo informacional.
Ainda bem que assim é. Ainda bem que meros produtos de consumo diário podem ser daí retirados e transformados em obras que nos fazem pensar. Quer dizer, na necessidade de ter tempo para esse acto já quase subversivo: um pensar que apela.
Que apela…apenas.
FJP