as fotografias de Filipe Braga.
[“Cartas impossíveis de entregar”, Filipe Braga, Galeria Quadrado Azul, 2024]
Li algures que os dias são baços, demasiado baços e colados ao que já conhecemos. Hoje, sem piedade, exige-se aos fotógrafos (mais do que a qualquer outro criador de imagens) uma habilidade extravagante: produzir imagens desajustadas ou despegadas do quotidiano que consideramos banalizado. Essas serão, porventura, as imagens que irão sobreviver. Eu concordo. Imagens irrepetíveis, imagens-mistério, imagens-enigma que como a audácia do prestidigitador nos seduzem pelo segredo oculto cujas dobras nos entretêm numa suspensão de sentido contínua. Nas palavras de quem entre nós melhor pensou o enigma, Mario Perniola, lemos “o enigma produz um lugar intermediário, um intervalo entre a forma e o fundo da imagem que não é destinado a ser preenchido.” E acrescenta ainda que a essência última da criação artística será justamente produzir, cultivar e manter o enigma. Pede-se então aos artistas um exercício funambulesco para lidarmos com a sociedade do espectáculo, cujo fundamento é a exposição avassaladora de imagens. Uma sociedade espectacularizada, dá-nos a ilusão que as imagens se encontram todas à nossa disposição ao mesmo tempo. Neste sentido, parecem-me ainda mais necessários gestos de profunda radicalidade como o de Gerárd Castello Lopes, quando em 1987 expôs apenas uma única fotografia tirada a uma rocha numa falésia no Guincho. Uma pedra que levita sobre a água do mar, embora saibamos que não está a levitar. É, porém, esta possibilidade de dizer e desdizer em simultâneo que produz o mistério. Um oxímoro que nos (im)plica; que nos atira para dentro da dobra.
As fotografias de Filipe Braga parecem alimentar este fascínio pelo “belo abismo”: produzir mundos que nos envolvem de mistério e enigmas. Perguntamos: Que enigmas serão estes? Que verdades nos vela este fotógrafo? Em que “instantes” investirá esperança e sentido? Que fantasmas o assombram?
Contemplar “Cartas impossíveis de entregar” (Galeria Quadrado Azul, 2024) é sentir o vento e o prazer da melancolia Outonal. Uma sucessão de fotogramas que conformam uma elegia à possibilidade derradeira; à potência do inefável momento in extremis. Uma última carta em forma de imagens. Esta sempre foi, para Filipe Braga, a única e mais certeira forma de exprimir as suas visões quiméricas ou a sua imaginação mais exaltada. Para lá e/ou antes das palavras, as imagens. Sempre as imagens. E, por isso, os disparos deste autor são actos de catarse. Ensejos reparadores de inquietações.
Não admira que, assim, as atmosferas das fotografias se afeiçoem à lugubridade e melancolia ou os grãos de breu vençam a luz.
Em cada intervalo das imagens pareço ouvir a voz de Luxúria Canibal a esganiçar “Isto é real? O que é real?” (…) Onde está o real? Onde está a minha casa?” Já agora, nas imagens (na casa?) de Filipe Braga ouve-se rock progressivo, punk, dark gótico – Moonspell, Mão Morta, Porcupine Tree. Voltando às interpelações de Adolfo, as imagens de Filipe nunca procuram deslindar a realidade ou oferecer uma explicação, o esforço é sempre outro e resume-se a inventar o seu próprio Mundo ou, na poética dos Mão Morta, o seu “novelo de paixão”.
Parece convencer-nos de que é possível inventarmos o lugar para onde dirigimos a nossa atenção, para onde demoramos a nossa perplexidade, no seu caso a demora vem desde o final dos anos 90 mas de forma mais pungente e decidida a partir de 2017. E desde então não parou de se espantar com o real para ultrapassá-lo em cada fotografia. A propósito, o próprio Filipe confidenciou-me as frases:
“Estou cada vez mais interessado em criar o meu mundo paralelo. Só meu. Onde desabafo e espanto os meus medos. Fica arrumado.”
Um misterioso filme interior a que acedemos em cada imagem que decide trazer à luz. Imagens trémulas, granuladas, fugidias, desfocadas…
Talvez a única forma de nos abeirarmos desse desabafo.