biography
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A ave do Sena, a cena do Ave.

[Et Voilá!, Amélia Fernandes, Galeria do Sol, CCOP, 2024]

Os primeiros azos criativos de Amélia Fernandes aconteceram no chão, com a tenacidade de um pau a desenhar junto do seu pai na infância — figura que juntamente com o seu marido Custódio, aparece recorrentemente nas suas imagens pictóricas. 

Às páginas tantas do seu livro A imaginação e a Arte na Infância, Vygotsky, denomina atividade criadora como toda a realização humana responsável pela criação de qualquer coisa nova, quer corresponda aos reflexos deste ou daquele objeto do mundo exterior, quer a determinadas construções do cérebro ou sentimento que vivem e se manifestam somente no próprio ser humano. Isto significa que a nossa atividade criativa encontra-se de mãos dadas com a nossa memória, residindo a sua essência no facto de reproduzirmos ou repetirmos normas de conduta já criadas e elaboradas ou ressuscitamos traços de impressões antigas. Em traços largos repetimos com maior ou menor precisão alguma coisa já existente. Passa-se, então, com o nosso cérebro o mesmo como quando uma roda deixa a sua marca na terra mole, deixando um trilho que fixa as transformações e que facilitará no futuro passar por ali novamente. 

Amélia Fernandes voltou a passar por ali novamente e diariamente.  Desde 2002, após uma cirurgia que a prostrou em coma numa cama de hospital, tem encontrado na pintura o seu prazer e ofício. Pinta tudo o que lhe espanta o olho ou a recordação.  As suas imagens são aberturas para o mundo que vê ou recorda a pouco e pouco sem hierarquias, nem freios de ordem alguma. A ideia da imagem pinta-se e já está! Há uma curiosidade de prontidão permanente, uma atenção genuína e vertiginosa à frivolidade quotidiana que a reconduz a uma construção diarística de imagens forjadas na aragem livre da perceção sobre o ambiente ao seu redor: uma abóbora; uma vindima numa courela; uma camioneta de carreira em estrada secundária; uma vista de pássaro sobre Lousado (que a viu nascer); um trator de lenha; um comboio – Lousado é um importante interface ferroviário da linha do Minho, tendo ainda hoje ativo um Museu Ferroviário—; um galo na alvorada; um papagaio; muitas aves e sucessivas cenas fluviais entre o rio Ave em Famalicão ou o Sena de Paris, onde reside desde que os anos 60 a forçaram a emigrar para França. 

Amélia atira-se para a tela sem amarras, preconceitos ou ambições outras que não compreender o mundo. O seu mundo. Atenção, os seus pretextos para começar uma nova imagem não são calculistas, seguem o instinto mais pueril de capturar em pequenas telas instantes autobiográficos. Nenhuma destas empreitadas busca uma construção mimética do redor, tão pouco se empenha em concessões à ótica convencionalmente tida por correta. Por conseguinte, não raras vezes um pequeno rochedo acaba numa galinha, um caminho numa ponte, uma copa de árvore numa montanha. O miolo do processo, quiçá os erros, geram uma espécie de inteligência própria que decide para além do escopo e intenção inicial da mão.  

Há ainda paisagens apocalípticas, animais híbridos, figuras medonhas e espectrais que povoam o imaginário de Amélia e onde ela se inclui. Ela está dentro das imagens tal como a pintura se alojou dentro dela. 

De quadro em quadro, as estratégias e critérios mudam: as tipologias compositivas; os símbolos; os temas; as paletas cromáticas; as desproporções entre formas; as mudanças de cor repentinas; as fusões entre figura e fundo; as variações entre paisagens planas – onde todos os pontos da imagem parecem ter o mesmo valor—e planos que aludem a profundidades indistintas.

O universo pictórico de Amélia é seu e reinventa-se todos os dias. 

Bem-dita a hora em que, destemida, procurou o seu lugar no Sol

Bem-haja a Joana, o Gonçalo e o Miguel que, destemidos, procuram outros sóis. 

Et Voilà!

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