[Texto para catálogo comemorativo dos 100 anos de Fernando Lanhas]
{a partir de “Sonho de levitação S11, 10-11 de Março de 1958”}
Tudo acontece entre o chão e o céu, no recato da intimidade, um pouco acima da terra. São micromovimentos lentos, quase impercetíveis, que experimentam o alcance do maior efeito: superar a gravidade, as minudências terrenas.
Talvez não exista maior desafio à imaginação humana.
O primeiro sonho de Levitação registado por Fernando Lanhas foi em 1958. Depois desse, existem registos de sucessivas levitações sonhadas até perto de 1995. Sonhou no tempo. Há uma duração, um ritmo, flutuações e interrupções, pausas. As levitações mostram-se no diagrama imprevisíveis e as suas altitudes variam entre rasantes centímetros até à vertigem de 8 metros e mais.
Todos os sonhos são para serem desenhados, por princípio.
As levitações de Lanhas, enredam-se numa metáfora: a convocação da imagem de um corpo que vence a matéria para alcançar uma temporária contingência espiritual. Ultrapassa a sua substância, num esforço de transubstanciação, para ascender a um plano superior de conhecimento elemental. Uma espécie de momento de grandeza espiritual, de elevação tal que permite ao “levitante” o privilégio de uma perceção ampliada da realidade e por consequência a aquisição de um (auto)conhecimento mais completo suscetível de transbordar, trazendo “benefício para os homens”.
O sonhador de levitação descreve no final uma recusa perentória em tornar público o ato de suspensão. Não o faz. Opõe-se à ideia e prática demonstrativa da sua revelação a um grupo de pessoas. Quererá o sonhador guardar um segredo ou produzir um enigma? Se o segredo nasce da vontade de criar um mistério, de velar uma evidência, o enigma obtém a força da tensão interrogativa que suscita. O segredo dissolve-se na sua comunicação, o enigma vai para além daquele ou daqueles que têm o privilégio de aceder à sua “chave”, projeta um espaço suspensivo intermediário sobre uma realidade complexa, articulada, multifacetada e contraditória só ao alcance, porventura, de quem for capaz de levitar.