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Pu-di-ca

Pu-di-ca | 22´49´´| Dv-Pal, stereo, cor| 2012


“Heroísmos” é o nome de uma série de textos que foram publicados pelo Domingos Dias Baptista num jornal regional do interior do País chamado Correio do Planalto entre Setembro de 2009 e Janeiro de 2010. A série de “crónicas” dá conta de vários acontecimentos (vividos na primeira pessoa) na Guiné durante a Guerra do Ultramar. Embora o título da série denuncie que estaremos perante um conjunto de relatos sobre feitos heróicos dos soldados portugueses, a sua leitura revela-nos de forma inquietante e plena de ironia outras formas de Heroísmos.
Estes textos foram interrompidos de publicação em Fevereiro de 2010, supostamente pela sua dureza e violência.
“Pu-di-ca” é uma interpretação em registo fílmico de um texto da série “Heroísmos” intitulado “O rádio Óscar”.

[Texto de André Lamas Leite]

Pronúncias rebeldes em pudicos céus

Escrevia e as palavras ganhavam vida, apoderavam-se de sentidos e designavam coisas e seres.
Isto feito, descansou o Criador.

Nascem palavras amarelas, vivas, ainda titubeantes como um pinto que debica as paredes do ovo que o separa do mundo. A zona de rebentação do rio vai-se afastando lentamente para dar lugar ao templo da palavra. O fundo é negro, de um preto escuro, contrastante, propositado. Não é um preto inimigo, de trevas, ostensoso. É uma tela que podia ser branca, que podia ter mais imagens que a imagem de um todo monobloco unicolor. Serve de suporte ao que se conta, mantendo quem está do lado de fora concentrado na mensagem. Sem mais. Não há distrações com aspetos secundários, com rococós maneiristas.
E elas – as palavras – emergem, com uma cadência diferenciada, dando à narrativa a noção de tempos próprios e diversos que acompanham a escolha de uma ou duas linhas de texto, sempre naquele amarelo interrogante.
As palavras falam eloquentemente perante um céu de rocha negro que, de início, é água a correr numa represa, logo, água não tão livre, um pouco aprisionada, ou melhor, água que tem de combater para seguir, para caminhar.
Alegoria da guerra, esta dos obstáculos. De uma guerra já meio longínqua, nas florestas da Guiné Bissau, onde a Portugalidade se fazia contra e através da guerrilha, onde o fogo das armas estava mais em brasa e onde mais se choraram os jovens ceifados.
Dantescas, portanto, as palavras. O que se pode dizer de positivo de um conflito armado? Mas as guerras são feitas de outras guerras, mais pequeninas, mais mesquinhas ainda. Guerras de egos de homens, de teimosias de capitães com nome de anjo e de alferes apelidados a partir do deus grego dos ciclos vitais que não perdem oportunidades para reafirmarem a hierarquia.[Que seria do mundo sem a devida hierarquia? Uma bola de sabão de pernas para o ar…]

Existem flores no meio das guerras. Feitas de palavras como “pudica”, ou melhor, como “púdica” ou como “pudíca”. Que melhor palavra se adapta a partes que se digladiam? É preciso ser pudico para matar um semelhante, só os pudicos podem infligir sofrimento e apenas quem tem a noção da vergonha concentra as esperanças de vencer uma guerra num punhado de folhas com uma ementa de palavras, onde estas se escarrapacham esventradas, com as tripas à mostra, escalpelizadas e dissecadas ao mais ínfimo pormenor.
Pobres palavras e mais pobres dicionários comprados num duvidoso supermercado libanês de Bissau… Coitados dos autores que mendigam por escudos em troca de um nicho de reconhecimento… De um pedaço de céu onde araras e papagaios servem de papel de parede que reflete a condição humana do poder, do desmando e do instinto perdulário de dinheiros públicos…
Outros céus, portanto! Os de agora são mais arejados, projetados por arquitetos laureados e engenheiros que se doutoraram no estrangeiro e estão assentes em vigas de betão reforçado. E nos céus de hoje não há o lápis azul que cala vozes incómodas do interior dos países! Nada disso

[Mania de os campónios e provincianos falarem, dizerem coisas por aquelas bocarras fora… quem sabe é quem manda e nós é que estamos no centro: de Portugal, da Europa, dos Estados Unidos, dos BRIC! Parolos!].
Sempre me inquietou como se dizem os céus, como se pronunciam. As palavras são seres muito sensíveis, que só respondem perante uma dada entoação.

[Puf! Vidrinhos de cheiro!]

São cadelas que conhecem os donos e não se deixam enganar por apitos que as desumanizam. As palavras são cultas e finas, cheias de si e cientes da importância que desempenham no mundo. Uma palavra fora do sítio provoca guerras ou conquista a paz. Exércitos de palavras povoam e poluem bibliotecas, desde Alexandria à do Congresso. Palavras de Babel que reagem à injúria de uma sílaba tónica desfocada, de um som aspirado mal dito. Maldito!
Somos nós – as palavras – que construímos os mitos, os grandes lentes da Academia, as mulheres e os homens de Ciência, da Arte. Nós somos o etéreo e o permanente, a ordenação e o caos. Ora nos consegues ler calmamente, ora a sofreguidão de quem nos oferece impede que nos acedas na totalidade. Ora somos sinónimo de patriotismo bacoco embrulhado em fitas rubras e verdes, ora de quinze paus por um pedaço de Cultura.

[E achas que a Cultura vale mais do que quinze paus?]

E, não esquecer: por nosso intermédio questionas as certezas das impressões de Gutenberg e transformas-te numa espécie de paladino sacrossanto da pronúncia! Do Norte, do Sul, do Este e do Oeste. Faço de ti um herói sem feitos heróicos declarados no IRS. Despejo-te como a um “bluff” encardido em céus de vermelho-raiva!
Porque nos tentou ainda mais esventrar Samuel Silva com o seu “PU – DI – CA”? Ainda por cima mostrando-nos assim, separadas, descarnadas, com frio, em singulares pares? Bem sabia que a nossa força reside na união. Que vivemos em sindicatos e que nos incomodamos por nos misturarem com guerras! Aliás, a ex-palavra “guerra” já há muito não existe! Aprendam: no XXXV Congresso Mundial das Palavras, foi retirada do “WWD – world wide dictionary”! E houve “press releases” e tudo! Pois, mas são meras palavras, não é? E como dizem vocês, “leva-as o vento”…

André Lamas Leite
Setembro de 2012

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