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A poesia multidimensional de Daniel Faria

A primeira vez que ouvi um poema de Daniel Faria – ouvi antes de ler – foi pela voz de Dom Tolentino Mendonça na Igreja de Santa Isabel em Campo de Ourique por volta de 2010. Desde essa escuta inaugural nunca mais lhe perdi o rasto. Uma singular coincidência se sucedeu: Daniel Faria viveu os seus derradeiros dias no Mosteiro de Singeverga, de onde sou natural e por onde calcorreei as alegrias da minha infância.  

Sempre estive perto, ainda sem saber. Desde então progredi na sua poesia como um arqueólogo de picareta e colherim escavando uma estratigrafia complexa cujas profundezas subterrâneas confiava desconhecer. As primeiras camadas foram as palavras e as imagens trazidas por estas, depois a afinidade com pessoas que o lêem, mais tarde o encanto pelos que o conheceram, mais tarde ainda a possibilidade de visitar o quarto de Daniel no Mosteiro Beneditino.

 Foi desta prospecção afectiva que surgiram evidências de que a poesia deste monge-poeta vai para lá do escrito revelando por sua vez múltiplas outras dimensões que importam conhecer na perspectiva de relançar uma aproximação inteira sobre o universo poético deste autor. Neste texto ensaio três ideias que sustentam a tese da multidimensionalidade da sua poesia: compreender a sua relação com o livro enquanto objecto de fascínio; identificar a visualidade do universo poético de Daniel na esteira da Poesia Experimental Portuguesa e, por fim, reconhecer a objectualidade e sentido matérico da sua poesia.

I

Os benefícios do toque: o livro enquanto tecnologia do fascínio.

Os livros contêm na sua natureza o desejo do toque. Eles existem para serem manuseados. Os livros pressupõem a presença de um leitor e por consequência a activação protocolar do seu manuseio. Folhear um livro de artista, um caderno de apontamentos ou um diário implica sempre um jogo labiríntico, hesitante, obriga a uma disponibilidade, a uma espera ou ao esforço desejante pela revelação dos seus enigmas. Para Daniel o livro, a sua materialidade e construção foi também um enigma, uma tecnologia de fascínio. Esta paixão levou-o ainda noviço em Singeverga, a realizar uma formação sobre técnicas de encadernação e restauro de livros numa das oficinas mais conceituadas de Espanha na reabilitação de livros, códices e manuscritos – a oficina das monjas beneditinas do Convento de Sarriá em Barcelona. Na visita ao seu quarto pude constatar o interesse de Daniel por pedaços de papéis amarelecidos e deteriorados que coleccionou dessas tarefas minuciosas de restauro e que por vezes usava enquanto matéria nas suas colagens juntamente com folhas de papel de lustro coloridas e/ou cartolinas. Desse período formativo resultaram conhecimentos técnicos que o poeta procurou aplicar em pequenos cadernos de apontamentos construídos ou reconstruídos por si cujas capas e engenho de fecho eram objecto de dedicada criação plástica, onde encontramos colagens organizadas em composições abstractas de índole geométrico. (Fig.01 + Fig.02) Estes cadernos revelam um singular investimento na manualidade dos processos construtivos (as cozeduras e amarrações são exemplo disso) e ao mesmo tempo, uma atitude humilde, despojada, evidente na economia de meios, recursos e materiais: fios respigados das tarefas rurais, aproveitamento de papeis de fotocopiadoras (usando o verso das páginas), restos de outras colagens, pedaços de couro, elementos orgânicos como pedras, conchas, madeiras, etc. associados a operações com equipamentos elementares de escrivaninha, tais como: furadores, agrafadores, x-actos, colas e tesouras.

Cada gesto, cada realização plástica de Daniel parece convidar-nos a um restabelecimento de uma certa ética na relação com o Mundo, a um processo de restauro da experiência sensível, a um reconhecimento e valorização das coisas mínimas e insignificantes que já não servem ou se ignoram e se derperdiçam. Tudo, em Daniel, pode ainda ser.

II

Revelar a escrita para além do escrito: o texto-visual

Falar de escrita nos dias que correm, quando dizemos que alguém escreve, que é um escritor parece que não nos referimos  mais à pintura de sinais, à escrita manual ou se quisermos à sua substituta escrita mecânica. Falar de escrita no contexto da literatura, resume-se ao texto, a um certo tipo de composição em que o  processo de representação, a sua visualidade, se tornou de tal modo implícito que passou para a região da invisibilidade. O texto, como nos diz Ana Hatherly n´A casa das Musas, “mesmo para o leitor especializado, tornou-se sobretudo o que ele significa, os dados conceptuais da mensagem, nada ou quase nada de como ele se apresenta à leitura”. Hatherly, uma das artistas pioneiras do experimentalismo literário e artístico dos anos 60 em Portugal, juntamente com outros grandes autores de vanguarda como E.M. de Melo e Castro, Herberto Helder, Salette Tavares, António Aragão, Silvestre Pestana, Fernando Aguiar, entre muitos outros… fizeram parte da conhecida Poesia Experimental Portuguesa (POEX). Esta autora é também responsável por uma seminal investigação histórica sobre as raízes do texto-visual português, encontrando na poesia medieval e barroca os fundamentos das experiências vanguardistas da poesia visual portuguesa, como os pioneiros Ideogramas de  E.M. de Melo e Castro publicados em 1962 ou até mesmo os seus Mapas da Imaginação e da Memória que vieram a lume no início dos anos 1970.

A Poesia Experimental Portuguesa, vista hoje em perspectiva, surge pelas mãos de um punhado de autores que procuravam um papel renovador do “establishment” cultural do seu tempo, tentando fundar uma nova posição ética de recusa e de pesquisa em que o princípio da experimentação e da liberdade discursiva  era uma pedra atirada à abulia da noite que Salazar impunha ao País. A POEX teve um compromisso manifesto de resistência e transformação de uma situação ideológica e linguística vigente.

É certo que a poesia de Daniel Faria não perfilha o mesmo enquadramento reacionário e ideológico que a POEX exibia na sua emergência, todavia algumas experiências mais formalistas deste poeta, como é exemplo os poemas/caligramas “Arte acidental” de 1988 ou “Deserto” do Caderno “Traço Branco” escrito sob alçada do seu heterónimo Germano Serra, possivelmente do mesmo período, parecem ser hospitaleiras de uma herança deixada por este movimento de vanguarda: o radicalismo morfológico, a espacialidade gráfica da palavra, o texto enquanto imagem.  Fig.03 e Fig.04

Este interesse revela-se ainda no livro “A Casa dos Ceifeiros”, editado pela Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia do Porto em 1993, onde pelo menos uma dezena de poemas são acompanhados por colagens que revelam a convivencialidade gráfica da sua caligrafia com as composições coloridas de formas geométricas recortadas, sublinhando ritmos através de repetições, conjugando-se com formas visuais puras, num jogo de grande experimentalismo  e sentido compositivo. Fig.05

Reconhecemos nestas experiências residuais de Daniel, uma vontade exploratória de estender a sua criatividade e experimentação para além das palavras no sentido de ensaiar um território híbrido onde o verbal e o visual se contaminam para inventar renovadas formas de recepção criativa. O leitor é desafiado a ler o texto sob o texto, preencher as lacunas, ver o invisível sobre o visível. A poética da escrita implica, assim, a leitura plural da imagem.

III – O poema-objecto

O experimentalismo poético de Daniel e a sua apurada sensibilidade para materiais, objectos e elementos naturais contribuíram para a expansão do seu conceito de poema como objecto escrito, acentuando a representação visual como uma possibilidade simultaneamente sintética e polissémica, uma vez que o elemento visual e matérico do poema se tornou um aspecto decisivo da sua estrutura, uma parte vital na sua constelação de significados. Ao retirar o poema da página para o apresentar como um objecto tridimensional, Daniel entronca uma tradição que vem desde os tempos medievais até à poesia concreta e espacial do século XX, restabelecendo o poema como um objecto multidimensional. Este experimentalismo literário de vasto lastro enriqueceu a leitura do poema, pois nestes casos, não se desprezam nenhum dos elementos da linguagem (inclusive sonora e performativa). Fig. 06/Fig.07/Fig.08

Durante a preparação da conferência e posteriormente do presente texto, tive o privilégio de conhecer em mãos três poemas-objecto de Daniel Faria que permanecem inéditos até hoje: “O País de Deus” (1991) oferecido a João Pedro Brito, “24 pássaros contra todas as ausências” dedicado ao Dom Abade Bernardino e “7 Fevereiro –  Festa das cinco chagas do Senhor” (1997) consagrado ao Padre Alfredo.

O País de Deus descobrimos um pote de barro decorado com motivos geométricos coloridos tapado por uma rolha de cortiça. No seu interior encontramos colocado sobre uma base de búzios um rolo de recibo em papel térmico com cerca de 42 metros de comprimento por 6 cm de largura pintado lateralmente de vermelho. Este rolo enigmático, fechado com dezenas de voltas de fio norte, revela a cada volta um longuíssimo poema escrito numa caligrafia delicada preenchendo a totalidade do seu comprimento de quatro dezenas de metros. Escrito entre 17 de Junho de 1991 e 10 de Julho do mesmo ano foi oferecido a João Pedro Brito no dia da sua Instituição no Ministério de Leitor a 14 Julho de 1991.

Neste poema-objecto cujo conteúdo se relaciona com a vida e o momento especial do noviciado de João Pedro, Daniel Faria explora um formato e suporte radicalmente diferente da escrita convencional e entrega o exercício da leitura deste poema a uma performatividade engenhosa, paciente e atenta: o poema vai-se revelando à medida que desenrolamos o rolo, transformando o já lido numa espécie de monte de papel entrelaçado. A experiência da leitura transforma-se numa experiência física que implica todo o corpo e simultaneamente cinemática, pois a visualização do poema acontece como se de uma sucessão de fotogramas se tratasse. “O País de Deus” enquanto poema não é apenas a escrita que no seu interior encontramos, mas toda a semiologia presente na relação entre seus elementos constituintes: os búzios, o pote de barro, a rolha de cortiça, a cor vermelha, o rolo de papel térmico, o fio norte, o modo de escrita e a operatividade da sua leitura, a distância, o espaço que ocupa, a fragilidade. O tempo.

O segundo poema-objecto assume a configuração de um metro desdobrável de carpinteiro, uma clara evocação a Paços de Ferreira, terra de marceneiros e carpinteiros de onde o Padre Alfredo é originário. Um pequeno poema sobre as cinco chagas do Senhor escrito sobre dez frágeis rectângulos de folha de madeira unidos por pequenos nós em corda de sisal. Cada elemento de folha de madeira suporta um verso deste pequeno poema evocativo da paixão e ressurreição de Cristo. 

O terceiro poema-objecto intitula-se “24 pássaros contra todas as ausências” constitui-se por um frasco em vidro com uma tampa de madeira. Guardados no seu interior encontramos 24 pássaros fotocopiados a partir de um único desenho onde a forma de uma ave se funde com uma espécie de sol criando a sugestão de um cálice. Este repetido desenho enigmático surge colorido de múltiplas cores com lápis de cor e unidos em sequência por um fio de norte.

A inventividade de Daniel Faria extravasa, como tivemos oportunidade de analisar,  a escrita de sinais ou até a colagem sobre papel. Na sua conhecida e rara generosidade, perceptível nos testemunhos de quem privou com o poeta, inúmeros foram os poemas que se consubstanciaram em materialidades e formatos diversos, quase sempre oferendas, umbilicalmente associados a acontecimentos íntimos. Poemas-dádiva.

Talvez por isso, estes poemas-objecto se tenham mantido guardados dentro de um núcleo muito restrito de pessoas que privaram com Daniel durante os seus últimos anos de vida. Um subterrâneo afectivo por onde este autor experimentou, muito para além das palavras, cores, texturas, ritmos, formas, materiais, composições, reinventando novas formas de perceber e sentir a sua poesia.

A descoberta destes artefactos convidam-nos hoje a reflectir sobre algumas questões fundamentais: qual o seu lugar no contexto da obra poética de Daniel Faria? Como, onde e em que circunstâncias se podem partilhar e expor? Que potência trazem para o nosso aprofundamento sobre a subjectividade poética de Daniel?

                                                                        *

Lista de Figuras

Fig.01 – Registo dos cadernos de Daniel Faria sob escrivaninha no seu quarto em Singeverga.

Fig.02– Colagem encontrada no interior de um caderno construído por Daniel Faria.

Fig.03 – Poema-caligrama “Arte Acidental” do livro Raízes Verbais escrito em 1988.

Fig.04– Poema-caligrama “O Deserto”, do caderno Traço Branco, com heterónimo de Germano Serra, sem data (1987-1988).

Fig.05– Poema-colagem “pórtico”

Fig.06– Poema-objecto “24 pássaros contra todas as ausências” fotografado no quarto de Daniel Faria no Mosteiro de Singeverga.

Fig.07– Poema-objecto “7 Fevereiro – Festa das cinco chagas do Senhor”, 1997.

Fig.08- Poema-objecto “O País de Deus”, 1991.

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