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Assim que Calipso aparecia sobre a luz do dia.

[Texto sobre Animal Vegetal Mineral de Mariana Caló e Francisco Queimadela, vencedores do Prémio Paulo Cunha e Silva 2018, publicado na revista digital “Contemporânea”]

https://contemporanea.pt/edicoes/07-2018/assim-que-calipso-aparecia-sobre-luz-do-dia

 

Assim que Calipso aparecia sobre a luz do dia.

 

Uma espécie de eixo cósmico entre a terra e o céu, uma escadaria mágica entre o raso húmus e o insondável além. Talvez pudéssemos caracterizar assim a enigmática estrutura que Mariana Caló e Francisco Queimadela desenharam e que evoca subtilmente os zigurates sumérios na sua forma e porventura na sua natureza mediúnica. Este templo-gruta convida o corpo-penetrante a entrar, através de uma cavidade estreita, num ambiente cavernoso e obscuro composto por um dispositivo circular de múltiplas projecções e uma massa sonora de feição arcaica sons de cigarras e assobios parecem vir de longe também, provavelmente das origens. É deste modo cultual que se vai revelando Animal Vegetal Mineral, projecto vencedor do Prémio Paulo Cunha e Silva, exposto no primeiro piso da Galeria Municipal do Porto.

Este prémio foi criado em 2015 pela Câmara Municipal do Porto para homenagear o antigo vereador da cultura Paulo Cunha e Silva, direccionando-se a artistas nacionais e internacionais com menos de 40 anos que não tenham tido mais do que uma exposição individual numa instituição de “relevo internacional”. O júri desta primeira edição encabeçado pelos curadores João Laia e Vicente Todolí e pelos artistas Meg Stuart e Julião Sarmento seleccionaram de um conjunto de 48 artistas 6 que compuseram a exposição final, entre eles, a norte-americana Christine Sun Kim, o brasileiro Jonathas de Andrade, a espanhola June Crespo, os portugueses Mariana Caló e Francisco Queimadela, o guatemalense Naufus Ramírez-Figueroa e, finalmente, a ucraniana Olga Balema.
A exposição abre com as composições escultóricas de Balema, um conjunto de delicadas construções neo-povera articulam-se no espaço, onde materiais inesperados (saliva, por exemplo) compõem-se entre si numa aparente fragilidade poética com discretas pontuações cinéticas.
Numa sala cúbica com um ambiente lumínico artificial, produzido por um conjunto de lâmpadas de luz negra verticais, aparece Third Lung uma instalação multidisciplinar que combina formas escultóricas suspensas, apitos de barro, luz e som. A paisagem sonora imersiva, produzida pelos apitos, simulam o canto dos pássaros convocando a dimensão mágica das tentativas de comunicação com os defuntos (referência à cultura Maia). Nas intenções de Ramírez-Figueroa estes artefactos sonoros não só remetem para o ancestral desejo de comunicação com quem desapareceu, como reflectem sobre a história do genocídio e do silêncio forçado na Guatemala, de onde o artista é originário.
June Crespo apresenta um conjunto de peças onde conflituam materiais pobres de propriedades contrastantes como betão e tecido. Numa abordagem escultórica que apesar de convocar histórias e acontecimentos íntimos não resvala em narratividade, preferindo que a hibridez do corpo-objecto circule nas estruturas de pendor abstracto apresentadas.
Christine Sun Kim, por sua vez, propõe uma sequência de monitores que apresentam cenas fílmicas legendadas por quatro amigos com diferentes graus de surdez, reflectindo sobre as contingências e os limites da tradutibilidade da experiência sonora em palavras, assim como o excesso de confiança depositada nos responsáveis pela legendagem, desde as suas escolhas do universo sonoro às respectivas descrições.
A instalação 40 nego bom é um real e o filme O levante corporizam a presença de Jonathas de Andrade na exposição. Um painel de pequenas pinturas e descrições ilustram uma espécie de receita culinária do “Nego Bom”, doce tradicional do Nordeste brasileiro, que convoca pela palavra “Nego” uma simbiose entre proximidade e afecto com o lastro colonial e racista. Por outro lado, o filme O levante combina imagens documentais da Primeira Corrida de Carroças no Centro da Cidade do Recife com os versos entoados por um aboiador, que tendo aparecido espontaneamente no dia da corrida foi convidado pelo artista a improvisar versos, imaginando o dia como uma tomada revolucionária da cidade por parte dos cavaleiros.
Na parte final da exposição deparamo-nos finalmente com Animal Vegetal Mineral de Caló e Queimadela. Um projecto que surge do interior de uma geometria referencial complexa que vai de José Gil a Paul Valéry passando por Jorge Luis Borges e Battaile. Há uma frase de Gil, proferida numa conferência intitulada “Objecto de arte objecto mágico”, detonadora de todo o movimento que gerou esta instalação: “É o corpo entre todos os corpos de todos os animais, minerais e até vegetais, aquele que tem a capacidade de deixar de ser, de devir, de deixar de ser humano…”. Uma vez mergulhados no interior do “templo”, este devir-corpo que o filósofo português profere, reverbera nos intervalos dos múltiplos fragmentos fílmicos apresentados – na possibilidade imanente de transformação do corpo, na sua plasticidade e erotismo, no seu abismo e destruição latente, nos seus espantos, estranhamentos e fabulações.
Esta constelação de projecções oferece a possibilidade de frequentarmos um labirinto composto por sequências de imagens retiradas de dois filmes do arquivo dos autores– um dos quais concluído e intitulado Sombra luminosa (2018) e um outro, ainda em construção, designado Dança do cipreste.
Sombra luminosa, realizado no contexto de uma recente residência artística levada a cabo no Centro Internacional das Arte José de Guimarães, faz confluir numa narrativa de vocação experimental um conjunto de imagens e sons apropriados de exposições, catálogos e conversas que ocorreram no espaço Museulógico durante a residência. Por outro lado, Dança do cipestre parte de um encantamento da dupla Caló e Queimadela pelo contagiante universo onírico de uma amiga de sempre e “compagnon de route” Mariana Barrote e o seu núcleo familiar. Embora ainda em processo, os fragmentos apresentados anunciam uma narrativa fílmica com forte densidade psicológica evocando ambientes soniais onde colidem figurações fantasmagóricas, o mito de narciso que nos reenvia para a génese e o fascínio da imagem, pulsão erótica (revemos todo o poema Calipso de Paul Valery no plano em que um dedo erógeno toca delicadamente a flora marinha de uma poça de água tornando tudo “ardente e amargo nas almas, e terno nos olhos”) entre outras imaginações delirantes.
Animal Vegetal Mineral consubstancia a actualidade de um duo cujo percurso artístico inaugurou-se numa deslocação a Trás-os-Montes para filmarem Gradações do tempo sobre um plano (2010) e desde então a experimentação tem tomado as imagens em movimento como meio de privilégio entre outras incursões como os ambientes site-specific, a pintura, a fotografia, o desenho e a escultura.

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