[Texto integrado no arquivo do projecto de João Fiadeiro intitulado “O que fazer daqui para trás?”]
Lisboa, 16 Novembro, 2015
Ao João Fiadeiro e a todos os que com ele fazem com que nossa imaginação vá para além do alcance dos nossos braços:
O que escrever daqui para trás?
Depois do acontecimento fomos dormir. No dia seguinte decidimos visitar o Jardim Zoológico. Ao longo do tempo – enquanto esperávamos o salto dos golfinhos, na vertigem do teleférico, à hora do lanche interrompendo um artigo qualquer do Expresso, no jantar indiano com a Liliana – a tua (vossa) peça foi assaltando a conversa, como um bandido que aparece, sem licença, contra a ordem das coisas e desaparece com a mesma prontidão, ficando a impressão de que pode surgir a qualquer instante outra vez.
Decidi escrever como se estivesse a olhar um retrovisor, aliás, reescrever, pois a urgência da escrita aconteceu em tempo real, num caderno que trazia no bolso no sábado à noite e que a luz também ela em movimento (contínuo fade out) concedeu:
Eu comecei por escrever:
“Não-acontecimento (intervalos); imprevisibilidade na espera; urgência no falar; sem tempo; fora de tempo; narrativas que falam sobre “entres” (bola de ténis, árvore que cresce, etc); suspensão; ligações (im)previsíveis;”
A Maria, impelida pela mesma necessidade, pediu-me o caderno e anotou:
“Pressa dos nossos dias – correr; às vezes não há tempo para falar de coisas simples; ninguém tem tempo para ouvir este tipo de estórias dos outros;”
Eu retornei:
“Relação com o espaço geográfico real (lá fora) e o espaço simbólico (cá dentro); micro-acontecimentos;”
Outra vez a Maria:
“A velocidade dos nossos dias leva-nos à loucura… As coisas deixam de fazer sentido, ficam desconexas; deixamos de ter as pessoas e passamos a ter o telemóvel.”
Quando reescrevo o que escrevemos juntos (também nós num jogo de ténis, com o caderno, no meio do público), constato uma coisa: eu, por defeito, por conhecer o método de trabalho, vivia o entusiasmo da estrutura, das regras, das decisões formais; a Maria, por outro lado, desarmada, ou aliás, armada com os melhores apetrechos (candura, liberdade, poesia) saboreia a peça e transporta-a de uma forma despreocupada para a sua vida, o seu dia-a-dia, para as suas relações. Como se ela quisesse acossar-se do dito de Ricoeur: “Fazer meu. Fazer-me eu”. Talvez seja esta a chave de relação, mais justa, para o que assistimos: como tornar o acontecimento nosso? Como posso fazer-me com ele?
Depois, ficaram ainda duas vontades de repetir:
- Repetir dentro: Talvez seja um daqueles trabalhos que devemos ver duas vezes. Ver uma e depois uma segunda para reparar no que vimos. Por exemplo: Entrei no auditório e não soube que a peça tinha começado. Quando entrou o primeiro elemento e o público se calou, percebi nesse exacto momento que a peça tinha começado desde que o bilhete se rasgou na entrada. Por isso a luz estava acesa. Não estamos habituados a que uma peça comece com um vazio cheio de coisas: a luz, um microfone, o chão arranhado de outros acontecimentos e o burburinho do público. Quando alguém entra, o silêncio irrompe do público e nesse momento percebemos (para trás) que tudo o que estava acontecer era parte integrante, só não tínhamos era consciência disso.
- Repetir fora: desejei muito estar fora do teatro, na rua e ver os bailarinos passarem a correr, na sua labuta autêntica, tomando o “fora de palco” com a mesma verdade e compromisso. Se eu estivesse fora, encostado numa esquina ou num canto do passeio converteria também a rua num lugar de atenção (palco) tal como os bailarinos o converteram. Já sabia, mas sei-o agora com outra certeza: inventamos o lugar para onde dirigimos a nossa atenção. Tenho a certeza que para eles a rua foi um prolongamento do palco.
O palco era, afinal, circular.
Seguimos hoje para o Porto de novo, mas diferentes.
Obrigado João e todos os co-autores desta dádiva!
Samuel e (sem saber, Maria)
Nota: Peço desculpa à Maria por partilhar as suas palavras escritas no meu caderno sem a sua autorização. Ela não atendeu o telefone e a urgência não deixou esperar.