O Caminho Português para Santiago de Compostela realizado em 2014 por Marco Fidalgo e João Paulo Marques de Lima foi o início de uma viagem que não mais findou. Com os pés gastos na terra testemunha essa aventura infinita de caminhar depois do caminho.
Este texto não fala das obras, no que elas encerram individualmente enquanto potências de significação, apresenta antes alguns pensamentos soltos que acompanham a ´pari passu´ os intervalos entre os trabalhos que agora se dão em presença.
Continuadores caminhantes
Por estranho que pareça, nascemos já com memória, ainda que não seja pessoal, mas da nossa espécie. Quando caminhamos conectamo-nos com a nossa ancestralidade trazida pela mão (pelos pés?) do património filogenético. Há, queira-se ou não, uma dimensão inata associada à nossa locomoção. Todos os bebés ainda antes de andarem apresentam reflexos primários de marcha.
Nos animais mais simples, como a Amiba, observam-se comportamentos inatos de carácter fisiológico que encontramos também no comportamento instintivo do ser humano, embora de uma forma mais complexa. Um exemplo seria o das cinesias (movimento ou faculdade de se movimentar) que são respostas da Amiba a determinadas condições ambientais, como a humidade, o calor, a luz. As taxias são outro tipo de respostas filogenéticas de orientação, mais elaboradas e eficazes, cuja função é a de se aproximar de – ou evitar – determinados estímulos. As taxias ocorrem sobretudo nos invertebrados inferiores e parecem estar presentes também nos complexos comportamentos de migração de cegonhas, salmões, tartarugas marinhas e muitos outros animais que percorrem todos os anos centenas de quilómetros seguindo rotas e estratégias idênticas.
A memória filogenética regista a experiência essencial da espécie na sua interacção com o meio ao longo de milhões de anos, e toda esta informação armazenada no genes, está na base da nossa adaptação ao Mundo. Porventura ao Mundo interior também. Será por isso que caminhamos?
Podemos assim dizer com relativo grau de precisão que no dealbar da vida somos continuadores de uma vontade de caminhar.
Espera-nos o caminho.
Documentadores “sentistas”
Para sermos documentadores conscientes daquilo que registamos ou colectamos é crucial ligar objectos e processos ao nosso corpo, é necessário tornar o organismo dono, proprietário desses elementos. Isso só acontece quando associamos o sentimento. Significa, então, que quando nos referimos casualmente à consciência e a relacionamos com a capacidade de representar o mundo que nos rodeia estamos a desfavorecer proporcionalmente o mundo que nos é interior. Isto acontece porque mapear o Mundo à nossa volta é essencial para regermos as nossas interacções com esse Mundo de modo a que sejam favoráveis à nossa sobrevivência. Muito embora ajude a revelar o que pode ser apreendido e usado a nosso favor, este processo não explica porque sabemos o que sabemos. Como nos vem dizendo Damásio, só podemos conhecer sentindo.
Cada trabalho nesta exposição é um exercício íntimo e delicadíssimo de apropriação sentimental de fragmentos, trechos ou excertos de uma experiência vivencial fracturante.
… torna-se uma comparação.
Todo aquele que caminhe sobre o mundo acaba, mais tarde ou mais cedo, por dar-se conta que vem caminhando sobretudo dentro de si. Quem se desloca gera uma mudança de posição: muda-se a tomada de vista, altera-se a percepção de ausências interiores, amadurece-se no encontro com a diferença, adapta-se o corpo e os seus modos de detetar e sentir a realidade. A geografia torna-se…
Deus?
Olhando as formulações de ambos os artistas nesta exposição nada, do ponto de vista da forma ou da significação, aparentemente os liga. A sua disposição numa instalação conjunta provoca, no entanto, afinidades entre eles. Nada de visível para isso contribui. Os materiais, as técnicas, os suportes, as formas, as composições, as cores, os signos, os símbolos. Nada. Aquilo que os poderá unir é oculto, subtil, secreto. Que há, então, de não-visível que os une? A memória? A música? A espiritualidade? Deus?