“Porque nós somos apenas a casca e a folha.
A grande morte, que cada um em si traz,
é o fruto à volta do qual tudo gira.”
Rainer Maria Rilke
I
Pequenos monumentos de coisas ausentes.
Uma romã é um fruto. É também, neste caso, uma relação com uma estória, uma narrativa íntima. No Outuno de 2013, num dos muitos regressos do Nuno à sua ilha da Madeira, existiam em casa inúmeras romãs que o pai trouxera oferecidas por um amigo cujo fruto sobejava de uma romazeira generosa. Uma dessas romãs viajou com o Nuno para o seu atelier em Lisboa, tendo sido objecto de minuciosa indagação e explorações várias. As concavidades interiores das cascas secas trouxeram-lhe perplexidade e ofereciam-se ao seu olhar respigador como formas espectrais denunciadoras de presenças anteriores. Desde então, esses pequenos monumentos de coisas ausentes foram sendo ardilosamente consubstanciados em globos celestes que perscrutam esse interior desaparecido, essa grande morte “à volta da qual tudo gira”. Continuam a ser romãs, mas são também tudo aquilo que representa o seu lastro simbólico ligado à fertilidade (útero materno) e ao sangue vital, ao nascimento e à morte. São romãs, continuam a ser romãs, mas são ainda também tudo o que escapa ao conhecimento destas, fundando na nossa imaginação essa grande aventura do enigma que é, afinal, o da arte no seu sentido primordial – serão formas quiméricas, estelares, celesteais?
Esta constelação de formas esféricas habilmente construídas em papel, assim como, o conjunto de plexiglass com o recorte da silhueta do seu filho António (uma sincera homenagem à artista e amiga Lourdes Castro) demonstram um desígnio fundamental que atravessa a obra do Nuno Henrique desde os tempos mais iniciáticos e que poderíamos caracterizar por filopátria. Uma espécie de fidelidade espacial, um amor ao lar, tal como acontece com o comportamento das espécies migratórias que regressam sempre aos mesmos lugares, por vezes com diferenças de apenas alguns metros, atravessando distâncias insondáveis. No trajecto artístico de Nuno Henrique tudo revela essa orientação atávica pelos lugares primeiros, pelos elementos primordiais da infância, do início, da origem: a botânica da Laurissilva, os dragoeiros, a orografia da ilha da Madeira, as sombras da Lourdes, as romãs do pai, as cores, as pedras vulcânicas.
II
A grande morte que cada um em si traz.
Há um verso de Rilke que nos desafia a pensar a morte ou, se quisermos, o sentido da vida: “A grande morte, que cada um em si traz/ é o fruto à volta do qual tudo gira.” Nada mais que uma proposta, é certo, nada mais que uma inquietante convocação para um outro quadro mental, a de que a morte não soçobra no derradeiro fim de linha, mas nasce com a grande respiração inaugural. Emerge da vida. A morte é, por conseguinte, o fim do morrer e começa quando nascemos. Esta noção reconfigura a ideia pétrea (ou fatalista) de pensar a morte como algo estático associado ao fim, num processo dinâmico que se inicia no nascimento. Tal como Rilke escreveu, a morte não nos surpreende, não aparece de repente, traz-se dentro (“cada um traz em si”). Estamos sempre a morrer e por isso adquirimos vida nesse processo. Perdemos cadáver na medida em que experimentamos o mundo, construímos relações, nos ligamos aos outros e nessa tarefa geramos vida.
“Calendário” ergue-se num momento singular na vida de Nuno Henrique: o nascimento do filho e a morte do pai. Acontecimentos raros, profundamente íntimos e transformadores que acontecem no caminho da vida tendo consequências extraordinárias que nos deixam diferentes do que éramos. Revelam de nós efeitos surpreendentes que teriam permanecido desconhecidos e mesmo inimagináveis, se não nos tivessem vindo lançar para fora do nosso caminho definido, propondo uma relação completamente nova connosco próprios. Estamos, por conseguinte, perante uma exposição paradigmática, única, decisiva e, talvez por isso, sem lugar a condescendências, o gesto é certeiro e interroga o essencial: o sentido da vida ou a forma como geramos vida neste processo contínuo de morte. Giramos, afinal, em torno do quê?
III
É preciso continuar.
Na sua aula inaugural no Collége de France, Foucault, começa o seu discurso por forjar um desejo: “Gostaria de ter atrás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo, duplicando de antemão tudo o que vou dizer) uma voz que dissesse: é preciso continuar”. Foucault convida-nos, assim, a reflectir sobre esta provocação: preferir ser um continuador a ter de começar. Quão raras vezes associamos a tarefa criativa ao acto de prolongar, permanecer, conservar? Esta anunciada aspiração do filósofo francês coloca-nos perante uma enorme lição de humildade que reconhece o valor da herança, no sentido em que nos liga a um filão primitivo sem interrupções e simultaneamente nos projecta para a frente (ou para trás novamente, sob a força de um vórtice) com a esperança e sabedoria de uma história anterior. O trabalho de plexiglass intitulado “Passagem” insinua subtilmente essa ideia belíssima:
É preciso continuar a dar luz à sombra que Lourdes nos oferece.
É preciso continuar a dar luz à vida depois da morte de um pai.
É preciso continuar.
É preciso continuar.
Seremos nós luminosos continuadores?