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Poderá a invisibilidade ser também lugar de privilégio?

[Texto para a exposição de João Baeta na Galeria do Sol intitulada “Se me esconder, desapareço? 15-11 a 30-11-2019]

 

 

“Não sei o que é mais real se a aguda
e agreste visão que desnuda o campo
se o fogo que desliza de capricho em capricho
enquanto o vento ondeia adolescente
A ácida nitidez ou a volúpia transparente?
Ou é mais real onde dói e amarelece?
E se a matéria não for densa se a gravitação
Outrora espessa já não formar a pátria?
Como será possível um trabalho no âmago
E alicerçar aí uma leve arquitectura?
Como poderemos fundar sem o que nos funda
Se esta é a atmosfera e a substância concêntrica
que gera o permanente movimento da identidade?”

António Ramos Rosa

 

 

Uma primeira forma de resposta
Qualquer interrogação é um movimento, perguntar é provocar não a resposta que efectivamente tememos ou visamos, mas os primeiros contornos de uma nova e melhor pergunta — que se torna portanto, uma primeira forma de resposta.
Nesta série de imagens que constituem a mais recente ocupação de João Baeta colocam-se, a meu ver, quatro interpelações necessárias: a primeira enreda-se no problema da substância do desaparecimento – o que se esconde? Quem se esconde? Qual o sujeito do desaparecimento?; a segunda sobre o agente da “desaparição” – o que faz desaparecer?; a terceira reside na implicação do outro necessária do outro? que relação de es contemporaços presentes e como nos tornamos presentes? or pergunta — que se torna porta – de quem se esconde?; e, por último, sobre a consequência dessa acção – o que produz essa oclusão parcial do corpo ou identidade?

Alguém se esconde ou a matéria do desaparecimento
De todos os lados chegam indícios sobre uma inquietação generalizada sobre o corpo, como já nos avisou José Bragança de Miranda. Não parece ser apenas o corpo, hoje, um lugar de incerteza, de assédio “físico” pela técnica ou pelos poderes actuais. O que entrou em crise foi justamente a sua concepção ou a sua própria imagem de um corpo metafísico expresso juridicamente na primordialidade do corpo próprio, funcionando como garantia última da “identidade” do “sujeito”, ou da singularidade do indivíduo. De repente vemos a matéria orgânica do nosso corpo servir de suporte ao frenesim das imagens-selfie, em contragolpe as imagens estão a afectar o biológico, que se procura transformar profundamente na ânsia de corresponder a uma imagem-expectativa contemporânea, fazendo-o na prática implodir. Este foto-ensaio de João Baeta revela-nos a interrupção de uma certa imagem do corpo, a do seu rosto. Esta inacessibilidade ao rosto torna-o anónimo recolocando a questão da individuação ou identificação como problema central. Na verdade talvez não importe quem se esconde mas a certeza de que alguém se esconde. Retomando o pensamento de Bragança Miranda, o corpo hoje só pode ser reconhecível como sombra ou fantasma. O corpo parece ser a representação de algo irrepresentável, que é o limite exterior da representação, e se apresenta como inquietantemente “inumano”.

“Cu-cu”
As imagens revelam também um carácter puéril, lúdico, imprevisto, de desafio ao jogo, ao humor e à ironia. Cu-cu! Um jogo de escondidas?! Quer seja na espreitadela infantil sobre o mundo numa atitude de acolhimento em que tudo é ainda novo (sempre novo) ou num manguito verticalizado numa pata de um galináceo. O tempo de quem brinca é um tempo sem medida, improdutivo (produtor de si mesmo), é para ser perdido, por oposição ao tempo contado, utilitário, medido, do “ganha-pão”, da subsistência. Por sinal é nessa improdutividade que encontramos o lugar da arte, das incertezas, da vulnerabilidade, do espanto e liberdade.

Os alimentos que vêm e vão
Por falar em improdutividade, serão as imagens de João Baeta um manifesto deliberado por uma relação com o mundo mais íntima e sustentável? Onde a nossa sobrevivência resulte de uma relação laboral assente na ideia de consumo restringido à sobrevivência e ajustada aos ciclos naturais? Estará o trabalho ou a procura desenfreada de transformação do mundo em “coisas duráveis” (mercadorias?) a esquecer o humano por baixo do lençol no espaço público?A vida humana produtora, como nos relembra Hanna Arendt, empenha-se num permanente processo de reificação e o grau de mundanidade das coisas produzidas, depende da sua maior ou menor permanência no mundo. É, afinal, na durabilidade onde encontramos a diferença entre labor e trabalho. Assim, “das coisas tangíveis, as menos duráveis são as necessárias ao próprio processo da vida”, à necessidade de subsistir, como por exemplo os alimentos que vêm e vão, que aparecem e desaparecem sendo produzidos e consumidos de acordo com o eterno movimento cíclico da natureza. Permanecem temporariamente no mundo, pois ou são ingeridos pelo homem ou entram em decomposição. Para Arendt, o labor produz coisas para o consumo imediato, produz as condições meramente necessárias para uma subsistência primária ou biológica; por oposição, o trabalho, retira coisas da natureza para sua transformação e durabilidade, não para ser consumido e por consequência devolvido à natureza, mas para ser usado, consumido repetidamente ou objecto de propriedade e valor. À primeira vista não será por acaso que Baeta escolhe alimentos, como o pão ou a abóbora, para se ocultar, são também eles coisas em desaparecimento.

Ver sem fome.
A nossa visão é pobre e parcial. Temos de aceitar que vemos pouco e curto para só nesse reconhecimento começarmos finalmente a ver para além da superfície. Dom Tolentino cita Simone Weil quando diz que só contemplaremos uma maçã quando não tivermos intenção de comê-la.

Se me esconder, desapareço?
Nem que seja por brincadeira espreitemos a pergunta de cabeça para baixo: Se me mostrar, apareço?
Se pomos a questão da viabilidade da presença ou do desaparecimento de alguém, é porque nos encontramos numa situação pessoal, social ou política que confere substância à interrogação.

A hospitalidade do invisível.
Nunca um título de uma exposição foi tão importante. Ele parece convidar-nos a pensar sobre o invisível, sobre uma forma de existência periclitante; um discurso, uma acção ou ideia que se apaga ou pelo menos deliberadamente resiste a permanecer nas luzes ou delas se vê imediatamente despromovida: subpresenças, sucessos fugidios, autores inconfessáveis. Como nestas imagens, vemos prontamente como é difícil fixar os seus limites precisos, são presenças insidiosas. Poderá a invisibilidade ser também lugar de privilégio?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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