Recentemente enrodilhou-se um assunto na minha cabeça, o qual se pode desfiar nas seguintes palavras-chave: saber de cor, provérbios, estereótipos e gaivotas.
Gostaria de fazer um elogio ao saber de cor[1] ou pelo menos esvaziar toda a negatividade entranhada nesta palavra quase desde que me conheço (deve ser mais ou menos coincidente com o meu primeiro dia de aulas).
Sobre este assunto vale a pena trazer à tona duas passagens:
- George Steiner: “As práticas da comunicação cultural e do ensino assentavam (no passado), de forma muito directa, na mobilização da memória. Aprendia-se em grande medida de cor (do coração) – termo que se adequa magnificamente à presença íntima, orgânica, da palavra e do seu sentido no espírito individual.”[2]
- Benjamin: “Narrar histórias é sempre a arte de as voltar a contar e essa arte perder-se-á se não se conservarem as histórias. Perder-se-á porque já ninguém tece ou fia enquanto as escuta. Quanto mais o ouvinte se esquece de si próprio, tanto mais profundamente se grava nele aquilo que ouve.”[3]
Existe indubitavelmente uma insurreição contemporânea contra uma certa ideia de memorização, aquela coisa de saber a tabuada de cor e salteado, a ladainha ou se quisermos alargar o assunto, o estereótipo[4].
Amiúde assistimos a perseguições impiedosas aos estereótipos no desenho, em particular o infantil. Eis uma frase ilustrativa do que acabo de afirmar: Os desenhos estereotipados empobrecem a percepção e a imaginação da criança, inibem a sua necessidade expressiva; bloqueiam os seus processos mentais, não permitem que desenvolvam naturalmente as suas potencialidades.
Preconizar a abolição do esteriótipo em nome da inventividade será manifestamente uma injúria à tradição, ao reconhecimento identitário de uma comunidade e aos seus sistemas de comunicação. Nenhuma centelha de criação acontece a partir do nada. A tabula rasa será sempre uma utopia e nem mesmo os espíritos mais libertários e progressistas do passado conseguiram romper de forma absoluta com a milenar herança vérbico-visual.
Deseja-se a destruição das formas fixas, repetitivas e de aparência absurda sem nenhuma problematização associada. Os estereótipos são nocivos (qual erva daninha?) e nada se faz para compreender esse repertório gráfico (resultado de todo um lento processo histórico de sedimentação e assimilação cultural) nem para pensar qual a sua origem e o seu papel na construção da nossa identidade e memoria colectiva.
No dia em que desenhei uma gaivota igual à que a minha avó alguma vez desenhou tornou-se claro, na minha consciência, de que aquele símbolo repetente (comum) mais que um estereótipo era uma marca transgeracional cristalizada que sofreu um efeito migratório espaço-temporal e que garante a consolidação de todo um espectro de representações perfeitamente identificadas e compreendidas por uma comunidade permitindo a sua própria sobrevivência.
O mesmo acontece com os provérbios que mais não serão que pequenos ideogramas de narrativas mais extensas e que condensam em si, de forma sintética, toda uma sabedoria ancestral. “Poderíamos dizer que os provérbios são ruínas que ficam no lugar das velhas histórias, e que neles a moral abraça um gesto tal como a hera trepa e abraça um muro”[5] tornando-o mais robusto.
A apologia do estereótipo que arrisco defender alicerça-se na ideia de que ao invés da sua irradiação será de vital importância um movimento de interiorização através de processos que escapam à consciência —o saber de cor, pois serão estas formas simples, invariáveis e estagnadas que animam e sustentam todo o espírito livre e criativo que deseja a reinvenção do mundo.
[Escreve ou desenha alguma forma que saibas de cor]
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
[1] Talvez importe no presente preocuparmo-nos com a afinação das palavras, cada vez mais desapossadas do seu significado original. Etimologicamente Cor — deriva do Latim Cor (cordis) que significa do coração, lugar do sentimento e espírito; do grego: καρδιά; do francês: cœur; tendo como família etimológica exemplos como: concordar [com o coração], cordial [grato ao coração]; recordar [voltar ao coração], etc. Esta investigação surge de uma recolha livre a partir de vários dicionários etimológicos mas tomando como referência o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
[2] Steiner, George — No Castelo do Barba Azul. Relógio D´água, Lisboa, 1992. P.111
[3] Benjamin, Walter — Sobre arte, técnica, linguagem e política. Relógio D´água, Lisboa, 1992. P. 36
[4] Estereótipo — chapa de metal sólida e inteiriça gravada fotomecanicamente em relevo destinada à impressão de imagens e textos em prensa tipográfica. Estéreo — do grego stereós,á,ón; sólido, pode dizer-se tridimensional, em compostos da terminologia técnica e científica do século XIX em diante. Tipo — do grego túpos, marca feita a golpe, marca impressa, figura, símbolo etc., do latim typus, figura, imagem, estátua; representação; objecto ou coisa que serve ou se usa para produzir outro igual ou semelhante; modelo.
[5] Idem, p.56